Hoje é o dia em que vou entrar no
Canyon Tara, que juntamente com o parque Nacional do Durmitor, fazem parte da
lista dos locais classificados como património da humanidade pela Unesco.
Aproveito a última cidade que vou encontrar nos próximos dois dias para fazer
compras e comer mais um burek na padaria em frente ao supermercado. É Domingo,
mas tal como nos outros países por onde tenho passado, uma boa parte do
comércio está aberta e muitas pessoas trabalham. Ainda não é meio-dia e já está
formada uma trovoada que deixa cair uma chuva grossa. Espero uns minutos e
assim que abranda ponho-me a caminho. Sinto-me sempre como uma criança quando
volto à bicicleta depois de um ou mais dias de paragem e hoje não é excepção. O
que começa por ser um vale enorme, começa aos poucos a estrangular, até dar
lugar ao canyon propriamente dito.
Ao aproximar-me de uma aldeia começo a
vislumbrar um aglomerado de pessoas e carros à distância. Penso tratar-se de
alguma festa, mas quando chego ao local percebo que se trata de um funeral. O
corpo é velado dentro de uma pequena casa e todas as pessoas estão sentadas à
conversa em bancos de madeira colocados no relvado imediatamente ao lado. Ainda
vou a pensar na dor daqueles que perderam alguém querido quando vejo um
ciclista com alforges no sentido contrário! Este assim que me vê atravessa, a
estrada até finalmente ficarmos frente frente. Chama-se Seweryn, é Polaco e vai
até à Macedónia, para depois voltar para trás, de encontro ao seu país.
Trocamos contactos e informações dos locais onde cada um já passou, que irão
ser uteis nos próximos dias, quer de um quer de outro. Conto-lhe acerca dos
meus planos para o meu trajecto através de Montenegro e as palavras que o
Seweryn mais repete quando lhe pergunto informações acerca da estrada em
determinados locais por onde já passou em Montenegro é “Man, that is a crazzyyyyy road!!” Está
exausto porque tem pedalado uma média de 150 km por dia. Eu digo-lhe que faço
menos de metade, que gosto de ir devagar e que, principalmente, não tenho as
pernas de pessoas como ele. Passados 20 minutos estou no camping que fica numa
espécie de planalto pendurado sobre o rio Tara, envolvido pelas paredes
escarpadas do canyon.
Logo pela manhã converso com um
francês (que viaja com um amigo numa antiga auto caravana) que me apitou ontem
antes de chegar ao parque. Diz-me que o plano para as férias deste ano era (ele
e o amigo) ir a Portugal ou até aos balcãs. Acabaram por escolher a segunda
opção e regressam agora a casa, depois de terem descido a costa até à Grécia.
Está um vento fresco óptimo para pedalar e a paisagem não podia ser mais
convidativa. O canyon Tara aperta cada vez mais até ficarem só duas paredes de
rocha de cada lado do rio, com árvores que nascem em locais onde só existe
pedra. A estrada segue pela escarpa da esquerda, entre curvas e tuneis. A certa
altura vejo mais um ciclista em sentido contrário. É francês e vai até
Istambul. Trocamos as informações habituais acerca da estrada e inclinações que
cada um irá apanhar no seu percurso até ao destino desse dia e quando este me
pergunta qual será a próxima aldeia com um mini mercado onde possa comprar pão
para comer com a lata de atum que leva na bagagem, abro o meu alforge e parto metade
do pão que tinha acabado de comprar para lhe dar. Sorrimos os dois: ele porque
vai ter comida para o resto dia e eu porque vejo cair pedras da ravina ao nosso
lado e não em cima de nós. Até ao final do canyon a paisagem mantém-se
magnífica, acompanhada pelo corrupio das carrinhas que transportam turistas e
barcos para o início de um dos percursos de rafting mais famosos por estas
bandas. No final da garganta rochosa está uma ponte que se eleva 150 metros
acima do rio e que constitui uma das atracções desta área. É o primeiro “banho”
de turistas que levo desde o início da viagem… Centenas de pessoas, a maior
parte integrada em excursões, circulam na ponte para tirarem fotos, comerem um
gelado ou comprarem um souvenir. Estou impressionado com este movimento de
gente mas tenho uma missão para o dia de hoje que não me permite perder muito
tempo aqui.
É que desde a ponte até Zabljac, onde irei ficar os próximos dias,
vai ser sempre a subir, pelo que vi no mapa, até aos 1450 metros, altitude a
que se encontra localizada a vila. Estou preparado para umas 4 ou 5 horas em
cima da bicicleta para vencer os 22 km que me separam da localidade e os
primeiros 10 são uma estrada que serpenteia pela vertente inclinada do canyon.
Tenho sorte porque as árvores fazem sombra na maior parte da subida, o que é
uma ajuda enorme. Passada cerca de uma hora e meia estou no topo da encosta do
vale. Ao longe a paisagem é brutal. Campos verdes, pontilhados com zonas de
floresta aqui e ali, circundam o maciço do parque Nacional do Durmitor, onde se
vislumbram picos nevados que se esticam como agulhas em direcção ao céu. Qual
não é o meu espanto quando reparo que daqui até Zabljac a estrada não varia
muito de cota, o que quer dizer que o pior já passou. À chegada noto que a vila
em si é constituída por uma rua principal com os serviços básicos e por casas
que se dispersam pela paisagem. Este é o centro de desportos de inverno de
Montenegro e tem a particularidade de estar rodeado de 22 picos acima dos 2200
metros. Esta morfologia, acompanhada por mais 100 km de trilhos marcados para
caminhadas, faz deste um local de passagem obrigatória para quem gosta de
actividades de ar livre. Além de rafting, a zona oferece ainda excelentes
condições para a prática de canyoning, btt, escalada, trekking, observação de
aves, etc. Quase todos os percursos pedestres partem do Crno Jezero, o lago que
fica praticamente adjacente ao centro de recepção de visitantes e nas suas
imediações situam-se dois campings. Escolho o que fica mais distante do lago e
não me arrependo. Localizado numa encosta virada a nascente, a vista para dois
dos picos mais emblemáticos do parque é fantástica. Eu também não quero perder
esta vista por nada por isso coloco a tenda com a entrada virada para a
montanha. O camping é gerido por uma família local super-simpática e que recebe
todos os visitantes com o tradicional copo de Rakija. À noite uma fogueira
enorme é acesa e quem quiser pode sentar-se num dos troncos de madeira,
dispostos em círculo em torno do lume. Não posso pedir mais que isto… o som dos
troncos a arderem, acompanhado com o de uma viola que é entregue todas as
noites a quem dela souber tirar uns acordes e ao fundo as montanhas, recortadas
pela luz de uma lua cheia, embalada por um céu estrelado.