quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Tara...

Hoje é o dia em que vou entrar no Canyon Tara, que juntamente com o parque Nacional do Durmitor, fazem parte da lista dos locais classificados como património da humanidade pela Unesco. Aproveito a última cidade que vou encontrar nos próximos dois dias para fazer compras e comer mais um burek na padaria em frente ao supermercado. É Domingo, mas tal como nos outros países por onde tenho passado, uma boa parte do comércio está aberta e muitas pessoas trabalham. Ainda não é meio-dia e já está formada uma trovoada que deixa cair uma chuva grossa. Espero uns minutos e assim que abranda ponho-me a caminho. Sinto-me sempre como uma criança quando volto à bicicleta depois de um ou mais dias de paragem e hoje não é excepção. O que começa por ser um vale enorme, começa aos poucos a estrangular, até dar lugar ao canyon propriamente dito. 



Ao aproximar-me de uma aldeia começo a vislumbrar um aglomerado de pessoas e carros à distância. Penso tratar-se de alguma festa, mas quando chego ao local percebo que se trata de um funeral. O corpo é velado dentro de uma pequena casa e todas as pessoas estão sentadas à conversa em bancos de madeira colocados no relvado imediatamente ao lado. Ainda vou a pensar na dor daqueles que perderam alguém querido quando vejo um ciclista com alforges no sentido contrário! Este assim que me vê atravessa, a estrada até finalmente ficarmos frente frente. Chama-se Seweryn, é Polaco e vai até à Macedónia, para depois voltar para trás, de encontro ao seu país. Trocamos contactos e informações dos locais onde cada um já passou, que irão ser uteis nos próximos dias, quer de um quer de outro. Conto-lhe acerca dos meus planos para o meu trajecto através de Montenegro e as palavras que o Seweryn mais repete quando lhe pergunto informações acerca da estrada em determinados locais por onde já passou em Montenegro é  “Man, that is a crazzyyyyy road!!” Está exausto porque tem pedalado uma média de 150 km por dia. Eu digo-lhe que faço menos de metade, que gosto de ir devagar e que, principalmente, não tenho as pernas de pessoas como ele. Passados 20 minutos estou no camping que fica numa espécie de planalto pendurado sobre o rio Tara, envolvido pelas paredes escarpadas do canyon.





Logo pela manhã converso com um francês (que viaja com um amigo numa antiga auto caravana) que me apitou ontem antes de chegar ao parque. Diz-me que o plano para as férias deste ano era (ele e o amigo) ir a Portugal ou até aos balcãs. Acabaram por escolher a segunda opção e regressam agora a casa, depois de terem descido a costa até à Grécia. Está um vento fresco óptimo para pedalar e a paisagem não podia ser mais convidativa. O canyon Tara aperta cada vez mais até ficarem só duas paredes de rocha de cada lado do rio, com árvores que nascem em locais onde só existe pedra. A estrada segue pela escarpa da esquerda, entre curvas e tuneis. A certa altura vejo mais um ciclista em sentido contrário. É francês e vai até Istambul. Trocamos as informações habituais acerca da estrada e inclinações que cada um irá apanhar no seu percurso até ao destino desse dia e quando este me pergunta qual será a próxima aldeia com um mini mercado onde possa comprar pão para comer com a lata de atum que leva na bagagem, abro o meu alforge e parto metade do pão que tinha acabado de comprar para lhe dar. Sorrimos os dois: ele porque vai ter comida para o resto dia e eu porque vejo cair pedras da ravina ao nosso lado e não em cima de nós. Até ao final do canyon a paisagem mantém-se magnífica, acompanhada pelo corrupio das carrinhas que transportam turistas e barcos para o início de um dos percursos de rafting mais famosos por estas bandas. No final da garganta rochosa está uma ponte que se eleva 150 metros acima do rio e que constitui uma das atracções desta área. É o primeiro “banho” de turistas que levo desde o início da viagem… Centenas de pessoas, a maior parte integrada em excursões, circulam na ponte para tirarem fotos, comerem um gelado ou comprarem um souvenir. Estou impressionado com este movimento de gente mas tenho uma missão para o dia de hoje que não me permite perder muito tempo aqui. 




É que desde a ponte até Zabljac, onde irei ficar os próximos dias, vai ser sempre a subir, pelo que vi no mapa, até aos 1450 metros, altitude a que se encontra localizada a vila. Estou preparado para umas 4 ou 5 horas em cima da bicicleta para vencer os 22 km que me separam da localidade e os primeiros 10 são uma estrada que serpenteia pela vertente inclinada do canyon. Tenho sorte porque as árvores fazem sombra na maior parte da subida, o que é uma ajuda enorme. Passada cerca de uma hora e meia estou no topo da encosta do vale. Ao longe a paisagem é brutal. Campos verdes, pontilhados com zonas de floresta aqui e ali, circundam o maciço do parque Nacional do Durmitor, onde se vislumbram picos nevados que se esticam como agulhas em direcção ao céu. Qual não é o meu espanto quando reparo que daqui até Zabljac a estrada não varia muito de cota, o que quer dizer que o pior já passou. À chegada noto que a vila em si é constituída por uma rua principal com os serviços básicos e por casas que se dispersam pela paisagem. Este é o centro de desportos de inverno de Montenegro e tem a particularidade de estar rodeado de 22 picos acima dos 2200 metros. Esta morfologia, acompanhada por mais 100 km de trilhos marcados para caminhadas, faz deste um local de passagem obrigatória para quem gosta de actividades de ar livre. Além de rafting, a zona oferece ainda excelentes condições para a prática de canyoning, btt, escalada, trekking, observação de aves, etc. Quase todos os percursos pedestres partem do Crno Jezero, o lago que fica praticamente adjacente ao centro de recepção de visitantes e nas suas imediações situam-se dois campings. Escolho o que fica mais distante do lago e não me arrependo. Localizado numa encosta virada a nascente, a vista para dois dos picos mais emblemáticos do parque é fantástica. Eu também não quero perder esta vista por nada por isso coloco a tenda com a entrada virada para a montanha. O camping é gerido por uma família local super-simpática e que recebe todos os visitantes com o tradicional copo de Rakija. À noite uma fogueira enorme é acesa e quem quiser pode sentar-se num dos troncos de madeira, dispostos em círculo em torno do lume. Não posso pedir mais que isto… o som dos troncos a arderem, acompanhado com o de uma viola que é entregue todas as noites a quem dela souber tirar uns acordes e ao fundo as montanhas, recortadas pela luz de uma lua cheia, embalada por um céu estrelado.



sábado, 14 de setembro de 2013

Biogradska Gora

O dia começa cedo por estes lados… Às 4h30 começa a amanhecer, por isso a rotina das pessoas também começa pouco depois da primeira luz do dia. Despeço-me da família e quase não tenho de pedalar durante 20km até ao cruzamento para Biogradska Gora, o meu destino de hoje, porque a estrada é sempre a descer. À entrada do parque, que encerra dentro dos seus limites uma das últimas florestas virgens da Europa, está uma cancela e uma pequena casa de madeira são o local de trabalho da funcionária que cobra a taxa de entrada (igual para todos os parques nacionais no país). Depois de pouco mais de um par de quilómetros a subir por entre Faias, Abetos, Amieiros, Freixos, Salgueiros, grande parte deles com 30 a 40 metros de altura e 400 a 500 anos de vida, chego ao lago que é o centro de partida da maioria dos percursos pedestres do parque. É também na sua margem sul que se situa o centro de recepção de visitantes, um restaurante e o local para campismo. 




Quando paro para montar a tenda apercebo-me também que este é o local com mais mosquitos por metro quadrado onde estive até hoje. São aos milhares, mas contra os ataques destes sugadores de sangue também tenho uma arma: besunto-me de repelente, mas mesmo assim não me irei livrar de dezenas mordidelas nas pernas. Espero o final da tarde, depois de uma sesta, deixando que a maioria dos turistas saia do parque, e porque é nesta altura que a luz do dia faz parecer este local ainda mais mágico, para fazer o percurso pedestre que circunda o lago. Só há silêncio e a luz dos últimos raios de sol, que ganham tons de fogo quando encontram as copas das árvores. Entretanto anoitece e nada me preparou para o espectáculo que irá ter lugar de seguida. Pirilampos, milhares deles, espalham-se pelo solo da floresta, num show de luzes impressionante, onde os actores secundários são os esquilos que, agora a coberto da noite, aproveitam para tentar procurar algum pedaço de comida que tenha ficado esquecido por algum turista. Gostava de ter uma máquina fotográfica decente para registar tudo isto. Como não tenho contento-me com as imagens que ficarão gravadas na minha memória para sempre.




Apesar de o local que escolhi para colocar a tenda ser fantástico do ponto de vista da localização, o chão é duro e quando acordo parece que acabei de levar uma tareia. Hoje vou tentar fazer o percurso pedestre que está recomendado no placard informativo. Pelo que consegui perceber do mapa, na elevação que marca o topo do percurso consegue-se ter uma perspectiva fantástica de uma boa parte da área abrangida pelo parque. Já sei que as primeiras duas horas vão ser a subir mas o trilho, sempre por entre as árvores, faz esquecer o esforço que algumas zonas requerem. Quando chego ao cruzamento onde tenho de virar à esquerda, encontro as primeiras pessoas, mas elas seguem pela direita. A partir daqui as marcas que assinalam o percurso desaparecem e a vegetação toma conta do trilho. Recuo! Se calhar enganei-me. Consulto a foto que tirei do mapa do percurso e analiso por onde segue. Não, o caminho é mesmo por onde estava a ir. Decido tentar atravessar a zona de vegetação onde o trilho desaparece, mas com cuidado porque entre as árvores não tenho pontos de referência e não me quero perder. Passados uns 30 metros reencontro o trilho, que mais à frente conduz a 2 casas de pastores abandonadas que de verão trazem os animais até aos pastos verdes das cotas mais altas. 



A partir daqui existe um trilho que, aparentemente, segue na direcção contrária àquela que tenho de tomar. Ainda o percorro cerca de 200 metros mas depois decido voltar para trás e procurar o que me parece ser o mais indicado, mas sem sucesso. A erva alta não permite vislumbrar nada que se assemelhe a um trilho, a não ser as marcas deixadas pelos javalis. Faço duas ou três tentativas de o procurar, mas em vão. Decido almoçar num rochedo que tem uma vista fantástica e voltar para trás. São quase duas da tarde, estou a começar a ver umas nuvens de trovoada e para chegar à tenda vão ser quase outras duas horas, a contar que não haja nenhum imprevisto. A ameaçada de trovoada não passou disso mesmo, pelo menos para já, por isso quando chego à tenda, coloco os calções de banho e dou um mergulho nas águas frias do lago. Quando vou para começar a preparar o jantar começa a chover torrencialmente. Existem dois abrigos de madeira, um com uma mesa grande de madeira, outro com uma fogueira que os guardas do parque mantêm acesa durante todo o dia. Há um grupo que faz um churrasco, já bebeu umas boas cervejas e canta alegremente músicas tradicionais de Montenegro. Antes de irem embora dão-me o pão que sobrou e eu aproveito o espaço livre em torno da fogueira para comer, acompanhado de mais dois homens que infelizmente não falam inglês.




quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Zlatica - Crkvine

Já passei por alguns canyons nesta viagem, por isso quando começo a pedalar penso que este vai ser mais um, até porque a paisagem que se vislumbra do seu início não é nada de transcendente. Puro erro. A natureza é, para mim, a única forma de perfeição existente, simplesmente porque não podia ser de outra forma. Está sempre a surpreender-me, a cada curva, a cada pormenor. E aqui não é diferente! Um canyon que começa por desenvolver-se numa área aberta, com o leito do rio escavado a pique umas dezenas de metros abaixo da cota mais baixa do vale, rapidamente estreita até chegar a uma certa altura em que nem eu consigo adivinhar qual será a orientação da próxima curva. Os túneis sucedem-se às dezenas. Não há berma e os espaços para parar são muito distantes uns dos outros, por isso quando, antes da entrada de um túnel, vejo um estaleiro de obras com o que me parece ser uma espécie de garagem, paro para almoçar. Afinal não é garagem nenhuma. É um camião enorme que parece um aranhiço, com uma estrutura semicircular em ferro que serve para compactar o betão que andam a colocar no tecto dos túneis. 






Passada uma hora continuo… Até agora todos os túneis tinham no máximo cento e cinquenta metros, por isso na entrada de cada um já se vislumbrava a luz de saída. Mas agora estou a entrar num onde não vejo luz ao fundo. Depois de uns metros a escuridão toma conta do cenário… “Eh lá, que isto ‘tá escuro aqui! Está mesmo escuro… já não vejo nada. Ah agora sim, uma luz ao fundo! Chiça!!! É um camião e eu  estou no meio da estrada!” Ele apita, eu guino para a berma e encosto-me à parede de rocha completamente no escuro. Que estúpido! Já devia ter tirado o frontal para prevenir uma situação destas (não estou preocupado com quem me vê, porque tenho reflectores espalhados pela bicicleta, mas sim em tentar ver a estrada). É o que faço de seguida e agora sim vislumbro o caminho até à saída. No final do canyon fica um mosteiro e num mosteiro há sempre uma fonte. Aproveito e paro para abastecer os bidons com a água fresca. Ao longe vejo pontos minúsculos a subir pelo único local possível para sair daqui… montanha acima. Carros e camiões escalam a esta crista rochosa até chegarem ao topo, situado umas centenas de metros mais acima. É por ali que vou ter de passar! Não sei quanto tempo vou demorar, por isso faço um segundo almoço. É a segunda grande “escalada” nesta viagem e nestas situações há uma coisa que a própria subida nos encarrega de nos ensinar e relembrar a cada metro que passa: a ser humildes. Com as espectativas (é por isso que as tento manter sempre no nível mais baixo possível) e com a forma como a encaramos. Com esforço chego ao topo, compro uma garrafa de água e começo a descida. Do lado esquerdo do rio que vai descendo a montanha entre floresta cerrada, a estrada, do direito casas aqui e ali. Já falta um par de horas para o sol se esconder por isso decido tentar encontrar um local onde passar a noite. Após uma curva em gancho vejo uma ponte de madeira, duas casas na margem oposta, um local anexo com árvores, um riacho e por fim um homem a regar as batatas. 




Atravesso a ponte e atiro um “Hello!”. De início o senhor, já de idade fica surpreso por me ver, mas depois, por gestos, pergunto se não há inconveniente de montar a tenda ali ao lado, debaixo das árvores. O homem não me liga muito e faz um aceno com a cabeça. Não percebo o que quer dizer e fico parado. Quando ele repara que eu ainda ali estou faz um sinal com a mão e eu estico o dedo em sinal de ok! Vou ficar aqui hoje. Quando me preparo para montar a tenda aparece a mulher do senhor. Simpática! A senhora apresenta-se, eu também (desfazendo-me em agradecimentos) e pergunta-me se falo francês! “Epah! Agora é que você me tramou!” – penso eu. Se o meu inglês já não é grande coisa o francês é uma miséria! Mas pronto, vou tentar ver se sai alguma coisa. Conversamos um bocado, diz-me que posso utilizar a torneira ao lado de casa porque a água é boa e de seguida aparece o marido, sorridente a falar pelos cotovelos… mas em sérvio, a língua oficial do país. Eu sorrio, aceno a cabeça em sinal afirmativo e fico envergonhado por não perceber nada. Mas ele fica contente na mesma! Quando já estou sentado a cozinhar o jantar na mesa de madeira que ali está para os almoços de família, chega a filha do casal. Mas não chega sozinha. Com ela traz qualquer coisa embrulhada em papel de alumínio. É um queijo de vaca caseiro, meio folhado (nunca tinha visto nada assim) e é para mim! Não sei como agradecer. Eu, que vim aqui quase invadir a vida normal destas pessoas, ainda sou “mimado” com uma coisa destas. Ficamos um bom bocado à conversa. A senhora vive em Paris, está de férias e diz-me que já esteve por duas vezes em Portugal. Que na primeira delas era jovem e foi à aventura, só com o dinheiro no bolso e que logo no Porto conheceu uma família que a convidou a ir até à sua casa em Braga e que depois a levaram a duas igrejas que ficam lá no alto. Foi há muitos anos. Diz que ficou impressionada com a hospitalidade portuguesa por isso voltou, tempos depois. Vejo nos olhos e nas palavras dela aquele brilhozinho de saudade das coisas que se fazem quando somos jovens e que deixamos para trás quando somos mais velhos por motivos que às vezes nem conseguimos explicar. Diz-me também que em Montenegro estou bem, que as pessoas são tranquilas e que não há aqui a confusão da vizinha Albânia, por exemplo. Antes de se ir embora ainda me diz que se precisar de algo é só bater à porta, que estou à vontade! Deito-me a pensar nisto, que só vem dar razão áquilo em que acredito… o mundo está cheio de gente boa, os noticiários na televisão é que nos fazem querer convencer do contrário. Quem faz os sítios são as pessoas e a maior razão que eu tenho para viajar é querer conhece-las.




quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Até já Albânia. Olá Montenegro!

Antes de sair ainda troco umas informações com o Seb e ele ainda me dá um mapa de Montenegro que já não precisa e que me vai ser muito útil. Até à fronteira a paisagem vai mudando ligeiramente, com o branco do calcário a fazer-se notar um pouco por todo o lado. Reparo também em algo que ainda não tinha visto: plantações de tabaco e folhas da mesma planta a secar em quase todas as casas. Está um calor brutal mas eu prefiro pedalar porque sempre se apanha uma brisa, coisa que parado é impossível.


 A passagem na fronteira faz-se sem problemas e 20 km depois estou à entrada de Podgorica. Volto a ter a mesma sensação que experimentei quando entrei na Albânia, mas agora em sentido oposto… é impressionante como uma fronteira pode encerrar em si tantas diferenças, de um lado e do outro dessa linha imaginária. Aqui, a forma das pessoas se comportarem e reagirem é completamente diferente dos acenos efusivos, dos “hello” ditos com um sorriso rasgado das gentas albanesas. A minha primeira impressão em Montenegro vai de encontro ao “feeling” que tinha em relação a este país: uma paz e tranquilidade imensas, expresso no olhar da maioria das pessoas por quem vou passando ao longo da estrada. Sei que Montenegro é um país com 600 e poucos mil habitantes e esta cidade, vista à distância parece-me relativamente grande para os “padrões” locais. Consulto o mapa. Ups! Afinal é a capital do país e tem cerca de 125 mil habitantes. Vou até ao centro para tentar trocar o dinheiro albanês que tenho por euros, a moeda usada em Montenegro. Entro num banco mas dizem-me que neste país vais ser impossível fazer esse câmbio. Que raio, já estou um bocado farto destes “’ódios de estimação” entre países vizinhos. A cidade não tem muito interesse e praticamente todos os edifícios parecem ser relativamente recentes. À saída do banco o segurança mete conversa e indica-me qual o melhor caminho para sair da cidade. Nunca entrei e saí de uma capital em tão pouco tempo. Está um vento frontal terrível. Acho que deve ser por causa do início de um canyon, 6 quilómetros a Noroeste da cidade. E é precisamente para aí que eu vou, porque o camping onde vou passar as próximas duas noites, com o objectivo de ficar um dia deitado a descansar, fica mesmo na boca desse canyon. Quando lá chego sou o único campista, todas as outras pessoas escolhem o hostel que faz parte do mesmo complexo para ficarem. Entretanto o vento começa a ficar ainda mais forte. Estico a tenda o melhor que sei e consigo. A noite irá ser a pior da viagem, com rajadas próximas dos 80 km/h. Porque raio é que sempre que penso em descansar, acontece precisamente o contrário?




Durante a noite a tenda esticou-se, deitou-se, torceu, mas de manhã está intacta. Só um elástico rebentado. Está desde já justificado o dinheiro que dei por ela (mesmo tendo a mais barata no local onde a comprei). Estou meio morto, preciso mesmo de descansar, mas ao longo da manhã o vento começa a acalmar e o calor dentro da tenda é tanto que mais parece uma sauna. Decido pedir uma cama numa camarata do hostel para a noite seguinte. Assim posso dormir o dia todo descansado. Nem acredito quando o rapaz da recepção me diz que a diferença de preço entre o campismo e a camarata é só um euro! Se soubesse isso antes tinha evitado uma noite de terror dentro da tenda. Mas quando as coisas têm mesmo de acontecer, não há volta a dar. É nesta altura, quando estou na recepção neste processo de mudança, que pego num guia do país que está em cima da mesa. Lá pelo meio saltam-me à vista umas fotos. São de um local a umas dezenas de quilómetros daqui, que fica mesmo na rota que vou tomar até ao parque Nacional Durmitor. Começo a pensar que se calhar paro lá um dia ou dois. 





Entretanto passa um comboio, do outro lado do rio. Tenho uma espécie de déjà vu que me deixa com uma lágrima ao canto do olho e reacende um sentimento de revolta… no meu país também havia uma das últimas linhas de comboio de via estreita em montanha da Europa, num vale lindíssimo onde corria também um dos últimos rios selvagens da Europa. Chama-se Tua e graças a um político “iluminado” que o meu país teve, de seu nome Sócrates, está hoje condenado à morte, à prisão perpétua atrás de um paredão de cimento chamado barragem. Na altura esta era uma entre cerca de uma dezena das que faziam parte do “Plano Nacional de barragens” Afinal, passaram-se alguns anos, veio o papão da crise e da imprescindibilidade da construção de 10, temos apenas só duas em processo de construção. As outras afinal já não vão para frente… Afinal agora já sabemos (dito por especialistas e técnicos entendidos na matéria, não por políticos sem escrúpulos) que não eram precisas nem 10 nem nenhuma: as que temos já chegam para responder às necessidades de consumo que estas duas novas barragens querem colmatar… “Porreiro pah”! É agora meio-dia, vou deitar-me, dormir, descansar e passar o resto do dia a actualizar o blog e a ver umas informações na net para os próximos dias, entre as quais o local que tinha visto no guia. É um parque nacional numa área de montanha e que integra também uma das últimas florestas virgens da europa. Parece-me bem, até porque amanhã vou ter uma subida relativamente inclinada e assim aproveito o dia seguinte para caminhar e descansar as pernas da bicicleta.





quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Deambular pelo paraíso

Vim a Thethi com uma recomendação expressa por parte da Bernii – fazer o trilho até Valbona, a aldeia localizada no vale que se encontra do outro lado da montanha. Como são 7 horas de caminhada até lá não vou poder fazer todo o percurso, porque depois não tenho tempo de voltar para trás. Assim decido ir só até ao passo de montanha que fica sensivelmente a meio-caminho e depois regressar. Mas para chegar lá acima tenho de subir cerca de 1000 metros e caminhar pelo menos 8 quilómetros, por isso acordo cedo e às 8 e meia já estou a caminho. Nem 10 minutos tenho eu a andar, quando vejo 3 cavalos carregados à minha frente no mesmo percurso, tal como tinha acontecido semanas antes em Rila, na Bulgária. São carregadores que fazem o transporte das bagagens de um grupo que segue a pé até Valbona, local onde irá pernoitar. Com os cavalos seguem dois rapazes e um homem já com uma certa idade. Quando me vêm chamam-me para seguirmos todos juntos. Apresentamo-nos e a conversa vai-se desenrolando a bom ritmo. Vivem os 3 em Thethi e ganham a vida a transportar a bagagem dos turistas entre as aldeias, enquanto estes fazem trekking pela região. Levam um ritmo considerável por isso pergunto a um dos rapazes que idade tem o homem que segue connosco. “70” – diz-me este último com 7 dedos levantados e a sorrir.  Logo a seguir faz um sinal a deixar cair a mão. O rapaz mais novo traduz: “no sex!”, como que a dizer “Ainda subo isto mas já não há “brincadeira” p’ra ninguém” eheh! Rimos todos e eu questiono a mim mesmo quantos jovens conseguiriam acompanhar nesta subida este senhor coxo e com a coluna completamente desalinhada. É certo que o homem deve estar farto de fazer isto, mas mesmo assim estou impressionado! 




Entretanto cruzamo-nos com o grupo cujas bagagens seguem com os cavalos. São 11 alemães que andam a fazer trekking durante 9 dias por estes lados com um guia local. Eu não quero perder a companhia dos 3 homens e dos cavalos por isso, depois de me despedir dos alemães acelero o passo para reencontrar novamente os animais e respectivos donos. Este trilho passa em locais que são habitat de ursos e lobos, mas como é utilizado há séculos pelos habitantes locais para fazer a ligação entre estas duas aldeias, que no inverno ficam completamente isoladas do mundo, eu não consigo ver nenhum dos dois. A subida é difícil e faz-se ora ao abrigo das árvores, ora pelo meio de clareiras na vegetação. A vista, essa, é brutal! Cada curva no trajecto revela uma nova perspectiva sobre o vale e as montanhas circundantes. Depois de cerca de 3 horas de subida chegamos ao passo que marca o ponto mais alto do percurso. A vista que se tem para o vale onde fica a aldeia de Valbona é ainda mais impressionante. Despedimo-nos. Eles seguem, eu volto para trás. Mas não agora. Primeiro, a pedido do pastor que está longe de mais para alterar o percurso que as suas cabras levam, ainda conduzo o rebanho correndo pelo trilho com os braços abertos e enviando pedras para o local onde alguma cabra mais isolada se encontra. O pastor assobia, agradece e faz um aceno em sinal de adeus. Eu faço o mesmo e sento-me numa pedra à beira do trilho, almoço e fico ali mais de uma hora a contemplar a paisagem. Outros caminhantes passam por mim, trocam palavras de ocasião e seguem o seu rumo, mas um deles pára e mete conversa. É de Thethi, trabalhou na Itália durante 6 anos, mas regressou às origens porque adora a montanha e este é o seu principal meio de sustento: é guia de trekking. Trocamos algumas impressões e enquanto o oiço reparo num pormenor engraçado: fala num tom baixo, que transmite uma tranquilidade impressionante. Aliás, todas as pessoas que tenho conhecido até agora que vivem na montanha são mais ou menos assim. Não admira… têm nelas toda a paz que estes locais transmitem.




O tempo começa a ficar negro, por isso decido que está na altura de regressar. Passadas 2 horas e estou de novo no local onde tinha deixado a tenda. Ao meu lado estão agora os dois jipes dos alemães de há dois dias atrás. Um casal com um filho de 14 meses e um amigo. Também eles me reconhecem e perguntam se vim até aqui com a bicicleta. Sorrio. “Nem pensar! Mas no caminho para cá passei por 3 malucos que o iam fazer”, respondo. Dizem-me que vão jantar na casa da família que serve de apoio ao campismo e perguntam-me se não me quero juntar a eles. Por 5€ a troco de comida caseira aceito e não me arrependo. Durante o jantar o amigo do casal conta-me que já esteve antes em Marrocos e que a Albânia só lhe faz lembrar Marrocos. Afinal não sou só eu a ver África aqui…




Quando a carrinha me deixou no camping quando cheguei a Thethi, o condutor disse-me que a hora de partida, de volta a Shkoder, é às 15h todos os dias. Mesmo assim quando acordo, pergunto ao dono do camping se ele sabe a hora a que a carrinha que sai mais cedo de Thethi deixa a localidade. "Meio-dia", escreve ele no chão com uma pedra. Ok, ainda tenho tempo, por isso dou uma caminhada até à cascata que fica a meio do Canyon que segue com o vale para Sul. É uma cascata formada apenas pela neve que vai derretendo, por isso quando deixa de haver neve, a cascata morre. É uma caminhada rápida mas bonita, ao longo do rio que apresenta aquele azul que não encontro palavras para descrever. Às 11h estou de volta ao camping para arrumar a tenda. Volto a perguntar o horário da primeira carrinha a uns rapazes. “2 da tarde”. Mau! Já são 3 horários diferentes que me apresentam. Vou esperar que cheguem as primeiras carrinhas que vêm da cidade para perguntar directamente aos condutores. Quando faltam poucos minutos para o meio-dia chegam duas seguidas. Pergunto ao condutor da primeira. “4 da tarde”, é a resposta! Hum, mas isso é muito tarde penso. Pergunto ao da segunda. “Daqui a uma hora.” Perfeito. Sento-me, espero e passados 20 minutos a carrinha pára em frente ao camping e apita para seguirmos. Somos só 4 passageiros: um local, eu e um casal alemão - a Maria e o namorado.



A conversa entre nós começa tímida mas rapidamente evolui para gargalhadas e trocas de perspectivas sobre os dias que ambos passamos em Thethi. Finalmente percebo porque raio alguém decidiu um dia vir para aqui viver: com a chegada dos turcos, alguns séculos antes, os católicos tiveram de se refugiar nas áreas mais remotas daquele que é hoje o território albanês. E parece que não se deram mal, porque a escola local continua a em funcionamento, ainda que apenas com 6 alunos. É que a maior parte dos habitantes regressa no Inverno à casa principal que possui, mais perto da cidade. Os que ficam têm de lidar com vários meses de isolamento e pelo menos 2 metros de neve durante todo o inverno. Agora não há bancos de plástico, vou confortavelmente sentado num banco de 2 lugares só para mim. A Maria conta-me ainda que na vinda para Thethi tiveram uma situação hilariante: um casal de idosos franceses, que teve de subir de joelhos para a carrinha, exigiu que o condutor parasse a cada meia hora de viagem para que estes saíssem e apanhassem borboletas para a sua colecção. Numa dessas paragens desapareceram e só voltaram passada uma hora e meia. Escusado será dizer que a viagem demorou quase 6 horas ("só" mais duas do que o normal), para desespero do condutor e das pessoas que tinham afazeres em Thethi. Paramos num café para o condutor e o outro passageiro virarem umas cervejas. A Maria e o namorado aproveitam e convidam-me para um chá. Eu retribuo e convido-os para minha casa quando visitarem Portugal. Parece que vai ser no próximo ano! Após este pequeno descanso a viagem segue muito mais animada... o condutor e o amigo riem agora como se não houvesse amanhã. Nós não nos conseguimos conter e fazemos o mesmo!



Chegamos a Shkoder, eu saio em frente ao supermercado para fazer compras para os próximos dias e vou ao apartamento do Arbri buscar a bicicleta e o resto da bagagem. O plano é pedalar uns quilómetros e ficar num camping já perto da fronteira com Montenegro. Despeço-me do Arbri que foi um anfitrião fantástico e pedalo à luz de um fim de tarde melancólico, com um lago e as montanhas como pano de fundo. O camping fica na margem Este do lago e qual não é o meu espanto quando chego lá e vejo novamente os dois jipes dos alemães que tinha reencontrado em Thethi. Rimo-nos, conversamos sobre como foi o dia de cada um e quando vou para escolher o local para montar a tenda, um motociclista chama-me e diz que ao abrigo da vedação de madeira talvez seja uma boa opção, porque no dia seguinte vai ser um local à sombra dos primeiros raios de sol. Chama-se Seb, é alemão e está no início de uma viagem de um ano que o levará até à Austrália. Antes do jantar ainda aproveito para dar um mergulho no lago mas depois começo a pensar para que local serão despejados os esgotos do camping e das aldeias das redondezas e 5 minutos lá dentro são suficientes para matar saudades da água.