quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Reencontro com o mar

Viagem e aprendizagem são sinónimas, andam sempre de mãos dadas. A primeira coisa que me vem à cabeça assim que acordo é que para a próxima viagem que fizer há duas coisas que não vão faltar na mochila: uns tampões para os ouvidos e uma máscara para dormir. Nesta noite que passou tinham dado um jeitão! Os primeiros para abafarem o ruído dos carros e camiões que passavam na estrada que fica a poucos metros do local onde tinha a tenda, a segunda para não acordar às 4 e pouco da manhã todos os dias, hora em que começa a amanhecer por estes lados. Na falta do tapa-olhos tenho dormido com o meu gorro polar enfiado até ao nariz… também serve. A decisão que tinha deixado para hoje, sobre qual a estrada a seguir, estava inconscientemente tomada desde há muito… era só uma questão do meu corpo ceder ao meu sonho: o de chegar às montanhas que abraçam a baía de Kotor ao pôr-do-sol. Não faço ideia se a vista de lá é boa e se é o melhor ângulo para fotografar a costa do adriático, por um motivo muito simples: nunca lá estive. Mas esse é o meu objectivo, por isso vou-me preparando mentalmente para que hoje seja o dia mais duro de toda a viagem, até agora. O terreno é um sobe e desce constante, são 100km até ao destino e às 8 da manhã já estão 30 e poucos graus. Não faço a mínima ideia se conseguirei chegar a Kotor hoje, mas também não estou preocupado… só tenho de estar em Veneza daqui a duas semanas para apanhar o voo de volta a casa. Os meus anfitriões não me deixam ir embora sem antes tomar o pequeno-almoço que me prepararam. Apesar de ser Domingo, o trabalho não pára e peço a um cliente da oficina que me tire uma foto com o dono. Para a posteridade fica a minha cara com o aspecto de ter sido atacada por um enxame de abelhas, mas não… foi só uma noite mal dormida. Despedidas feitas, morada anotada no meu caderno e sigo viagem.




A estrada percorre inicialmente as margens do lago onde tinha planeado ter ficado na noite anterior. O cenário que se vislumbra a partir daqui é diferente do que encontrei até agora: aldeias de pedra parecem nascer naturalmente na paisagem e as montanhas enrugam-se ainda mais. Já aqui tinha estado sem nunca cá ter posto os pés. Foi no Gerês, há alguns anos. Aqui tudo me lembra essa realidade em que a montanha cria as lendas, isola as aldeias e molda os homens, apenas com uma diferença: lá o granito, aqui o calcário. Aquilo que vinha sendo um passeio à beira do lago depressa se transforma numa subida sem fim. A vegetação, na sua maioria composta por mato e árvores, ajuda a quebrar o calor, pois em alguns locais as árvores fazem sombra a toda a largura da faixa de alcatrão. É o dia mais quente até agora, mas sinto-me bem. Às vezes, não sei vinda de onde, sou assaltado por uma energia súbita, que parecia estar guardada para estas alturas de maior esforço. O terreno é tão irregular e o mato tão cerrado que não consigo adivinhar qual o percurso que a estrada tomar na paisagem. Durante quilómetros a fio não encontro nenhuma recta com uma extensão superior a 100 metros. Sinto-me num carrossel: altos e baixos, esquerda, direita, os sentidos embriagados e um sorriso infantil no rosto. Passam cerca de 4 horas e até agora cruzei-me com 3 carros, 2 motas e algumas pessoas a pé, no meio do nada. De repente lembro-me das palavras do Seweryn, o polaco também a viajar de bike, que conheci uma semana antes, quando lhe perguntei acerca desta estrada - “Man that’s a crazyyyy road”. Não sabia se ele tinha dito isso por causa da beleza ou da dificuldade, mas agora já descobri: é por causa das duas. Na aldeia que fica sensivelmente a meio do trajecto que pretendo percorrer hoje, paro para almoçar. No único café da aldeia, saído de um filme dos anos 70, cobram-me 2 euros por uma coca-cola e por me encherem os bidões com água da torneira. Ao longe começo a reparar numa espécie de cortina montanhosa, limitada por um pico de onde sobressaem várias antenas retransmissoras. Imagino que seja na zona a oeste dessas elevações que fique situada a baía de Kotor. Entretanto as aldeias vão-se sucedendo. Passo por uma, longe de tudo, onde está um homem bêbado, debruçado em cima da mesa do único café. Do lado oposto da estrada vários homens cantam, bebem e acenam à minha passagem. A estrada começa finalmente a subir e vislumbro pela primeira vez o local onde deve ficar situado o passo de montanha que tenho de atravessar para chegar à baía de Kotor. Preciso de água e num edifício que serve de escola e junta de freguesia, no meio de nenhures, fica também um café. O dono, a única pessoa que resiste àquela desolação, permanece solitário a ver um filme que passa na TV. Enche-me os bidões e deseja-me boa viagem. Uns quilómetros mais à frente estaciono à sombra de uma casa abandonada para comer algo. Passados 5 minutos vejo aproximarem-se ao longe dois ciclistas com alforges. Param quando me vêm. São duas belgas que vão até à Grécia. Trocamos itinerários, dicas e quando lhes vou para dizer que está um calor de morrer, elas adiantam-se e dizem que a temperatura aqui é fresca, porque em kotor, de onde saíram hoje de manhã e para onde me dirijo, estão mais 10 graus. Engulo em seco! Elas já fizeram hoje mais de 1000 metros sempre a subir com este calor… sinto-me um menino ao pé destas duas viajantes que não parecem acusar muito cansaço. Já sei que faltam só 4 km para atingir o passo de montanha e depois deverei ver então o mar Adriático e a baía. Quase uma hora depois e estou praticamente no topo. Vou imaginando qual será o cenário que me espera lá em cima, agora que o sol começa a espalhar um tom laranja intenso por todo o lado, típico dos finais de tarde memoráveis. A estrada inclina-se mais um pouco, eu começo a ficar com um friozinho na barriga... o mar está do outro lado! Mais uma curva e, no meio da vegetação cerrada vejo o topo. É ali, consegui cá chegar! Estou radiante, ansioso e quando finalmente termino a subida…





Nada de água salgada! Vejo à minha frente o que se assemelha a uma enorme cratera, com cerca de 2 km de diâmetro, rodeada por escarpas de calcário enormes. Na sua base estão 3 aldeias e campos de cultivo que, qual paleta de cores, dão local um tom ainda mais mágico ao cenário. Ao fundo, no horizonte, consigo distinguir uma linha muito ténue. Imagino que seja o mar. A estrada desce até à base da cratera, para voltar a subir novamente no limite oeste desta. Estou inquieto e as minhas pernas imitam o coração: aceleram; e a vontade de ver para além daquele monte de calcário que está mesmo à minha frente é superior a todo o cansaço que possa ter. Passo por motociclistas que trazem um sorriso no rosto, imagino que da vista que acabaram de presenciar. Chego a um ponto em que vislumbro dois pináculos de rocha, rasgados pela estrada. Quando lá chego a montanha abre-se e dá lugar a uma vista impressionante sobre a baía de Kotor, o recorte das elevações mais próximas e o Mar Adriático. Paro a bicicleta, os meus olhos inundam-se e as lágrimas caem-me pelo rosto. Chorar de tanta felicidade é algo que não consegue ser avaliado por nenhum dos sistemas de medida inventados pelo ser humano. Sinto-me leve, nas nuvens, capaz de abraçar toda esta natureza que me envolve. Daqui até lá abaixo, à baía, são 22 km, através de 25 curvas em serpente, todas elas numeradas. Tiro as últimas fotos e deixo a máquina de lado. Eu e a bicicleta somos, agora mais que nunca, um só! Descida abaixo, o único movimento que o corpo executa é o de deitar-me para a esquerda ou para a direita, conforme a inclinação de cada curva. Quando chego finalmente à baía está um calor sufocante e já passa das 7 da tarde. Apanho um choque com a quantidade de gente que vejo por todo o lado, com a música alta que sai de um dos bares da marginal e com a confusão de carros desportivos, barcos e afins. Depois apercebo-me que hoje é Domingo... O Tomek, um polaco que conheci o ano passado na Roménia e do qual fiquei amigo, esteve há duas semanas aqui em kotor. Falámos pela net e ele deu-me umas indicações preciosas: qual o local onde fica um parque de campismo barato, quanto quilómetros são de lá até à antiga cidade de Kotor, etc… Faço como ele fez e dirijo-me a um camping, localizado já quase no centro da baía. Entretanto ainda me cruzo com um casal de ciclistas canadianos, que viajam entre Split e Istambul. chego ao parque, atulhado de gente, mas lá acabo por conseguir descobrir um recanto mais tranquilo. No entanto há uma coisa que me deixa feliz: do outro lado da estrada fica a água morna da baía e digo morna porque observo dezenas de pessoas que ainda tomam banho quando já são 11 da noite.






segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A caminho do Adriático

O dia acorda com um sol lindíssimo e o meu estado de espírito parece estar em sintonia com a natureza que me rodeia. Sinto-me leve e feliz. Desmonto a tenda, coloco os alforges na bicicleta e dirijo-me à mesa de madeira colocada em frente à casa do casal que detém o camping, que além de recepção, serve também de ponto de encontro e de local de refeições. Pago um valor irrisório por 4 noites de campismo, com direito a frigorífico, fogão para cozinhar e uma vista brutal sobre alguns dos picos do parque. A dona convida-me para me sentar e acompanhá-la no pequeno-almoço. A filha, que não deve ter mais de 8 anos, já fala um inglês quase perfeito, fruto do contacto com os estrangeiros que vão passando pelo parque. Oferece-me uma taça de salada de fruta com canela. Digo-lhe que está deliciosa e ela responde: “I made it”. Depois pergunta-me se tenho irmãos, que idade é que têm e que idade tenho eu. Ao ouvir a minha resposta, sorri com uma ternura pura e simples, imagino que reflexo da vista que tem da janela do quarto. A dona despede-se de mim com um abraço e um “Boa viagem”. Antes de deixar o parque ainda reparo no boneco de madeira que está colocado à entrada deste. Com uma mochila, um bastão de caminhada, um boné e… uma coisa típica das Caldas da Rainha, desta feita em madeira, não em loiça. No centro da vila, depois de consultar a internet reparo que, quando estou a arrumar o portátil na mochila, alguém plantado no passeio olha para mim. É um mochileiro, acompanhado de uma viola. Já vi esta cara em algum lado mas não me consigo recordar onde. Ele faz questão de me lembrar: em Skopje, capital de Macedónia, umas semanas antes, na saída à noite pelos clubs mais badalados do país. Abraçamo-nos, rimo-nos da coincidência e falamos dos itinerários que nos trouxeram aqui, a este momento!| Ele foi pelo Kosovo, eu segui pela Albânia. O destino quis que nos voltássemos a encontrar agora. Com toda a emoção esqueço-me de tirar uma foto. Não faz mal. Pode ser que o volte a ver outra vez, um dia...  





Começo a pedalar, mas tenho de tomar um decisão… Existem duas hipóteses a partir daqui: ou sigo directamente para sul, com destino à baía de Kotor, já no mar Adriático, ou faço um desvio de 80km para atravessar o maciço do Durmitor e depois pedalar finalmente até Kotor através do Canyon que limita o parque Durmitor, a sul. Quando chego ao cruzamento tenho de optar: em frente ou pela direita. Meto pela direita, em direcção às montanhas do parque, mas apenas para voltar a desistir da ideia umas dezenas de metros mais tarde. O joelho direito anda a doer-me já há alguns dias e nesta estrada vou ter de subir até aos 1900m. Não quero arriscar, tenho ainda muitos dias pela frente! Sigo em frente, através de uma descida que dura quase uma hora. Na vila onde termina essa descida estaciono a bicicleta à sombra de uma árvore para almoçar e observo os polícias que fazem uma operação stop a escassos metros dali. Estou tranquilamente sentado na relva quando oiço um estrondo enorme. Não acredito! A bicicleta rebola pela encosta, com três mortais, soltando toda a carga que tenho dentro dos alforges. Largo as bolachas que tinha na mão e corro para evitar que a minha companheira de viagem acabe na estrada, que fica uns metros mais abaixo, esmagada debaixo de um carro. Quando a consigo finalmente apanhar tento logo fazer uma verificação rápida… parece que não foi nada de grave. Depois de endireitar o volante, volto a colocá-la no sítio onde a tinha deixado inicialmente. A seguir recolho os alforges que saltaram do suporte, bem como peças de roupa, latas de atum, fruta, etc.! Que susto! Encontro-me na cota mais baixa que o mapa assinala por isso já sei que daqui para a frente só há um opção no que a inclinações de estrada diz respeito: é sempre a subir. A primeira subida faz-se através de curvas em serpente que escalam a encosta íngreme. Quando chego ao topo a estrada torna a descer, mas só para voltar a subir novamente uns quilómetros mais à frente. Perscruto o horizonte a tentar vislumbrar por onde seguirá o trajecto mas não consigo descobrir. Estou num vale, ao longo do qual vão aparecendo algumas aldeias e a partir da última a estrada começa novamente aos “ss”. Está calor e eu cansado. No mapa está assinalado um túnel, a alguns quilómetros daqui, não consigo perceber quantos, mas passados 10 minutos descubro que, afinal, o túnel é já aqui e que depois de o atravessar é sempre a descer! São cerca de 20 quilómetros sempre a descer a uma velocidade entre os 50 e os 60 km/h. Sorrio, sorrio muito (não demasiado, para não engolir nenhuma mosca) e largo os travões naquela que irá ser a descida mais rápida de toda a viagem. Não conheço nenhuma sensação que se compare com esta… a brisa que atravessa o corpo, a luz do final de tarde, as montanhas e a liberdade! Quando finalmente atinjo o final da descida sou envolto por um bafo escaldante! 




                                      

A cerca de 20 km do ponto onde me encontro existem dois lagos,nas imediações de Niksic, a segunda maior cidade do país, que ao longe parece um amontoado de prédios horrível. Decido ir até um deles e procurar um sítio para passar a noite. Quando já estou perto do primeiro lago começo a ver jovens a vir na direcção contrária, com calções de banho e toalhas aos ombros. Paro para perguntar se existem algum camping nas redondezas mas as duas raparigas que estão à minha frente ficam envergonhadas e respondem com gestos que não me podem ajudar. Reparo agora que estou sem água e que vou precisar dela para cozinhar o jantar. Um quilómetro mais à frente estão 5 homens completamente bêbados sentados perto de um contentor decrépito. “Deve ser um bar e deve ter água” – penso. Errado! O interior está cheio de lixo e cervejas vazias. Um dos homens mete conversa comigo mas está tão bêbado que nem se aguenta de pé, quanto mais dizer um par de palavras correctamente. Passados dois minutos vejo uma oficina de mecânica onde dois jovens lavam um carro sob o olhar atento de um homem que presumo ser o patrão. Viro à esquerda, entro no pátio e pergunto se me podem encher os bidões que trago na bicicleta. Um dos jovens fala um inglês razoável e aproveito para saber se no lago mais próximo há algum sítio seguro para montar a tenda. O rapaz vai traduzindo a conversa para sérvio (a língua oficial do país) e a certa altura o patrão mete a mão no ar e começa a indicar o relvado que separa a oficina residência da estrada “se queres acampar, ficas aqui na relva”! Óptimo! A troca inicial de palavras evolui rapidamente para qual será o meu trajecto a partir daqui. Digo-lhes que amanhã pretendo chegar a Kotor, uma baía interior, a cerca de 2 km da costa do Adriático, rodeada por montanhas com 1000 metros de altitude. Existem dois acessos à baía a partir do local onde me encontro, mas o meu objectivo é utilizar aquele que, a avaliar pelo mapa, deve oferecer a vista mais brutal da baía: a estrada que desce abruptamente aos “ss” a partir do topo da montanha, a 1000 metros, até chegar ao nível da água da baía, 0 metros. Tenho mais outro desejo para o dia de amanhã: quero chegar à montanha que rodeia a baía a tempo de ver o pôr-do-sol e o recorte da costa do Adriático. Não conto nada disto aos meus anfitriões, espero que eles me indiquem o melhor caminho. Dizem que pela estrada que estou a pensar seguir que não vale a pena, é um sobe e desce constante, é mais longe e a estrada é pior, que o melhor é seguir pela estrada principal e entrar na baía pela parte norte. Aceno que sim, mas penso para mim que decidirei o que fazer amanhã, quando acordar. Mal acabo de montar a tenda a mulher do dono da oficina põe a mesa que se encontra à entrada de casa com café e bolo e chama-me para comer. Pela segunda vez em poucos dias, sou recebido como um convidado em casa de quem me conhece apenas há um par de minutos...




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Durmitor - último dia


Acordo feito num farrapo! Tenho as pernas doridas e dormi mal. Aproveito a manhã para ir até ao centro da vila para actualizar o blog e comprar comida. Aproveito também para comprar um copo de mirtilos a uma das duas famílias que os estão a vender à porta do supermercado e, de seguida, dirijo-me à padaria que, tal como nos outros países que tenho atravessado nesta viagem, tem uns folhados de fazer água na boca a qualquer mortal. Regresso ao camping preparado para almoçar e dormir uma sesta reconfortante, mas o calor que se faz sentir e a discussão entre o casal que decidiu montar a tenda a um metro da minha, não me permitem mais do que uma hora de descanso. Aguardo então pelo final da tarde para fazer uma pequena caminha a um dos muitos lagos existentes ao longo do parque. Como já passa das 5, o guarda que cobra a taxa de entrada nos trilhos já não se encontra ao serviço. Embrenho-me no trilho, entre árvores enormes e levito pela floresta. Sim… levitar é a palavra exacta para aquilo que sinto quando caminho e tenho os sentidos ocupados com a beleza daquilo que observo, oiço e respiro. Não encontro muita gente e a maior parte vem já em sentido contrário ao meu, terminando assim um dia de deambulações pelo parque. Chego rapidamente ao local que tinha planeado. Um lago rodeado de floresta cerrada, que não permite ver além das copas das primeiras árvores, é iluminado pelos últimos raios de sol, que dão ao local um aspecto mágico, onde decorre uma dança cor-de-fogo entre a água, a vegetação e o sol.  Tento tomar outro trilho de volta ao camping mas perco-me. Decido voltar para trás… está a escurecer e não vale a pena correr riscos. 




É quando estou a voltar para trás que reparo num monte de lixo deixado ao lado do trilho... aqui há ainda um longo caminho a percorrer nesta matéria. Umas dezenas de metros antes da entrada do camping, um grupo de crianças joga badminton  num campo improvisado. As consolas e os jogos de computador podem esperar pelos dias frios porque, agora que é verão, aproveita-se para estar ao ar livre. Chegado à tenda, sou assaltado por uma nostalgia tremenda… amanhã já irei estar noutro local, longe daqui e já começo a sentir saudades desta vista, destas pessoas e desta paz. A cozinha do camping está especialmente requisitada hoje e quando chega a minha vez de cozinhar o jantar divido o fogão com um belga que está a viajar durante 10 dias por Montenegro com a namorada. Trocamos impressões acerca do país e desta paz desconcertante, até que o rapaz me diz que estudou política internacional na universidade me pergunta agora pela situação no meu país… Quando lhe conto, muito por alto, como vão as coisas em Portugal, como funciona o governo manipulado pelas grandes empresas, a sua reacção é igual á de todas as outras pessoas com quem tive oportunidade de trocar impressões sobre a situação em que o meu país se encontra: esboçam um sorriso pelo ridículo daquilo que se passa no extremo oeste do continente Europeu. Entretanto já temos o jantar preparado, mas a conversa ainda vai a meio, por isso convida-me para me juntar a ele e à namorada. Moram em Gent, ele trabalha na faculdade e para incentivar a utilização da bicicleta, pagam-lhe 20 cêntimos por cada quilómetro percorrido entre a sua casa e o local de trabalho. Sorrio ao ouvir isto e imagino a mesma medida a ser implementada em Portugal… de um dia para o outro a venda de bicicletas disparava e acabavam-se rapidamente as desculpas do frio, da chuva, das subidas, etc. 




sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Tocar o céu no Bobotov Kuk

Depois de um dia de descanso hoje é o dia que tenho planeado fazer o trekking mais extenso no parque Nacional de Durmitor. Na noite anterior analisei o mapa, as distâncias, os trilhos e decidi que vou tentar ir até ao cume mais alto do parque, Bobotov Kuk, localizado a 2522 metros de altitude. Já sei que serão pelo menos 5 horas até lá e depois cerca de 4 para voltar. Acordo às 7 mas não dormi muito bem, por isso ainda não sei se vou conseguir chegar lá acima. Logo vejo como me vou sentindo… 1 km depois de ter deixado o camping, um carro parado no início do trilho! É um dos guardas do parque que cobra a taxa de turismo para qualquer pessoa que entre dentro do perímetro do parque nacional. Pergunto se o bilhete é válido para os próximos dias: não! Se quiser caminhar todos os dias, todos os dias tenho de pagar a taxa. Cerca de 100 metros à minha frente segue um grupo constituído por 3 rapazes e pela namorada de um deles. Mantenho sempre o contacto visual com eles até que acabamos por seguir mais ou menos juntos a partir da primeira meia hora. O trilho inicia à cota 1500, por isso a primeira hora é uma subida íngreme feita através da densa floresta que ocupa as zonas mais baixas do maciço montanhoso. Está um dia lindo, translúcido e com uma temperatura espectacular. Antes de atingirmos os 1800 metros as árvores desaparecem e dão lugar a pequenos arbustos, a vegetação rasteira e à erva fresca, que desponta agora um pouco por todo o lado. Mas há outro elemento na paisagem do qual é impossível tirar os olhos (pelo menos para mim, habituado à areia da praia e às temperaturas amenas): neve por todo o lado. A partir do ponto onde nos encontramos e até onde o nosso olhar alcança, a neve disputa com o verde da natureza o papel de protagonista. 




Por vezes o trilho fica invisível por debaixo das áreas ainda coberto de branco. Na primeira dessas situações, escavo com os pés umas escadas para conseguir subir para o patamar seguinte.   É nessa altura que me cruzo com um cavalo que abastece provavelmente uma cabana de montanha com o seu dono. Eu sou leve, subo sem muita dificuldade esta zona íngreme com neve e gelo, mas o cavalo, a descer e carregado, faz um género de escorrega até encontrar de novo terra firme. Quando passo a crista rochosa que limita a paisagem, vislumbro um vale enorme, onde pastam dezenas de ovelhas, guardadas pelo pastor que tem uma cabana de madeira com o respectivo redil, mesmo ao lado do trilho. Para fazer mais uns trocos vende também cerveja fresca e refrigerantes (imagino que mantidos nalgum recipiente com gelo retirado das redondezas) aos caminhantes. Paramos e meto conversa com o grupo com o qual vinha fazendo a subida. São estudantes franceses, e estão de visita a Montenegro durante 10 dias. Conheceram-se todos no ano anterior na… China! Cada um deles fazia erasmus na mesma universidade chinesa; a partir daí ficaram amigos e fazem agora as primeiras férias juntos depois dessa aventura asiática. Fico espantado quando reparo que um deles tem calçadas umas sapatilhas de pano (na noite anterior tinha ouvido o dono do camping dizer a outros campistas que para se fazer este percurso convinha ter umas boas botas – eu também não as tenho, só trouxe um par de sapatos de caminhada, perfeitamente normais), mas mais estupefacto fico quando reparo que, de todos, é o que caminha e transpõe os vários obstáculos naturais com maior agilidade. Do local onde nos encontramos não consigo vislumbrar o cume onde vamos tentar chegar – sim, neste ponto do percurso já decidi que vou até lá acima. A perspectiva do parque de campismo era completamente diferente… todos os cumes pareciam mais facilmente acessíveis. Aqui, do ponto onde nos encontramos, a montanha abafa a presença humana e revela-se na sua magnitude através de paredes rochosas imensas, verticais e quase intransponíveis. 




Estou com os sentidos de tal forma embriagados por este “excesso” de natureza que nem sinto os efeitos do esforço. Seguimos… passamos a crista rochosa que se erguia à nossa direita, para voltar a entrar noutro vale, este que conduz a um anfiteatro natural gigante, rodeado por 3 picos rochosos gigantes. O do meio é o Bobotov Kuk e é enorme. Perguntamo-nos como conseguiremos chegar lá acima, visto que da nossa perspectiva, todas as paredes antes do cume são completamente verticais. O trilho aqui desaparece por completo por debaixo da neve que cobre toda a área. Não há um único local onde possamos abastecer os cantis por isso encho os meus com gelo… daí a meia hora, pendurados ao sol, no exterior da minha mochila, estarão perfeitamente bebíveis. A progressão na neve e gelo é tremenda…com muito cuidado e sempre escavando escadas com os pés para não haver nenhum deslize. Quando nos dirigimos para aquele que parece ser o melhor caminho para chegar ao topo, vemos ao longe, numa cota bem superior à nossa, um grupo a esbracejar… Dizem para não subirmos, que do local onde se encontram é impossível aceder ao cume. A única hipótese será “escalar” a vertente de 300 metros, composta por gelo e pedras solta, que se encontra defronte de nós.  Ainda nós estamos a procurar o melhor ritmo e o local onde colocar as mão e os pés quando reparamos que o rapaz das sapatilhas de pano já lá está em cima… nós só chegamos 20 minutos depois. Encontramo-nos agora numa crista de onde se consegue observar a imensidão da paisagem, para leste e para Oeste. Mais caminhantes, alguns vindos do sentido contrário descansam e aproveitam para repor energias deitados na erva fresca, aproveitando um sol maravilhoso. Nós fazemos o mesmo. Ofereço bolachas ao Ami, o rapaz das sapatilhas de pano. Agradece mas não pode comer? “O quê??? Depois deste esforço todo não podes comer?” – penso eu. “Ele é muçulmano e estamos no Ramadão”, diz-me um dos amigos. De sapatilhas de pano, sem comer, e com esta energia toda… Daqui até ao cume faltam cerca de 20 minutos. 




Depois do estômago reconfortado seguimos através da base do pináculo rochoso que constitui o pico. O trilho estreita e chegamos a um ponto em que este fica “pendurado” sobre uma ravina de 700 metros de altura. O Ami atira: “Esta paisagem merece 5 minutos de paragem”. Ficamos ali os 5 em silêncio, sem conseguir dizer nada perante aquele cenário brutal, agressivo, mas completamente deslumbrante. 50 metros mais acima está o acesso final ao cume, que fica 20 ou 30 metros acima desse local. Vamos ter de escalar, está vento e não temos qualquer segurança. Um erro vai atirar-nos para o abismo, 700 metros mais abaixo. Ponderamos… Estamos felizes por termos chegado aqui, por isso não vale a pena arriscar. Sinto pela primeira vez o que é estar no topo de uma montanha pelo meu próprio pé. É outra forma de liberdade que nunca tinha experimentado e fico viciado. Quero fechar os olhos, abrir os braços, inspirar e agradecer estar aqui, vivo e a viver, mas a vista é tão deslumbrante que não consigo! Só consigo sorrir, tal como os meus novos amigos. Agora é a descer e custa muito mais. As pernas já estão massacradas e é mais difícil ultrapassar os locais com neve. Passadas 3 horas chegamos de novo à cabana dos pastores e alguns dos caminhantes aproveitam para descansar e pedir uma cerveja fresca. Daqui até ao camping a caminhada irá ser penosa, já em esforço. Despeço-me dos meus companheiros franceses (o Ami chegou quase uma hora antes de todos nós) e após chegar, aproveito a luz do fim do dia para me esticar na tenda a observar a montanha, cansado mas com um sorriso enorme.



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Durmitor - Dia 1

Uma das razões que me trás aqui é caminhar, mas não o vou fazer já hoje. Pelo menos um percurso longo! Vou, antes, aproveitar para descansar, dar uma volta pelas redondezas, actualizar o blog e fazer compras para os próximos dias. A manhã é passada no centro da vila, num banco de jardim de onde consigo apanhar uma rede de Wifi desbloqueada. No mapa que a Bernii (a australiana, a viajar de bicicleta pelos balcãs durante 4 meses, que conheci duas semanas antes no coração da Albânia) me deu, com uma rede de percursos pedestres que abrange três parques naturais nesta zona, há um local que me desperta imediatamente o interesse: uma escarpa situada no encontro de 3 canyons diferentes. Deve ter uma vista soberba… pego na bicicleta e tento ir até lá, mas quando já tenho 7 km feitos decido que vai ter que ficar para outra altura. O terreno é um sobe e desce constante e eu hoje tirei o dia para descansar, não para amanhã estar sem me mexer. 




Volto para trás e procuro outro local mais próximo do ponto onde me encontro, que está assinalado no mapa como sendo um miradouro sobre o canyon do rio Tara. Procuro, procuro, mas não encontro… Mesmo com o mapa, meto pelo primeiro cruzamento à direita, quando devia ter seguido em frente. Não faz mal. Fico contente assim, porque passo por aldeias isoladas no planalto e pessoas com aquela simplicidade ternurenta, que sorriem e acenam à minha passagem. Há aqui uma calma e uma paz impressionantes e as quem aqui vive reflecte isso mesmo. Quando volto ao camping, a filha mais nova do casal que detém o parque, brinca na relva, rebola-se, abre os braços e sorri. É feliz aqui. Penso que no meu país, tal como noutros que estão em paz, as crianças brincam às guerras, às pistolas e aos mortos. Aqui, neste país farto da guerra, brinca-se à paz e celebra-se a vida! O mundo está todo virado do avesso… A 10 minutos de caminhada daqui fica o Crno Jezero, ou BlackLake, em inglês, uma das atracções do parque Nacional do Durmitor. Espero pelo fim da tarde para ver o lago. A luz do final do dia dá sempre um toque mágico à natureza e a maior parte das pessoas que lá passaram o dia devem estar agora a regressar a casa. Um trilho em volta do lago permite observá-lo de todos os quadrantes, sempre à sombra de árvores que balançam suavemente com a brisa que se faz sentir, sob o olhar atento das montanhas circundantes, que parecem assumir o papel de guarda-costas a tamanha beleza.. Há famílias em piqueniques, pessoas que fazem jogging depois de um dia de trabalho e outras que tentam encontrar um enquadramento mais improvável para conseguirem uma boa foto. Todos reunidos em torno do mesmo fenómeno, tão belo e tão simples: a natureza no seu esplendor!