Já passei por alguns canyons
nesta viagem, por isso quando começo a pedalar penso que este vai ser mais um,
até porque a paisagem que se vislumbra do seu início não é nada de
transcendente. Puro erro. A natureza é, para mim, a única forma de perfeição existente,
simplesmente porque não podia ser de outra forma. Está sempre a surpreender-me,
a cada curva, a cada pormenor. E aqui não é diferente! Um canyon que começa por
desenvolver-se numa área aberta, com o leito do rio escavado a pique umas
dezenas de metros abaixo da cota mais baixa do vale, rapidamente estreita até
chegar a uma certa altura em que nem eu consigo adivinhar qual será a
orientação da próxima curva. Os túneis sucedem-se às dezenas. Não há berma e os
espaços para parar são muito distantes uns dos outros, por isso quando, antes
da entrada de um túnel, vejo um estaleiro de obras com o que me parece ser uma
espécie de garagem, paro para almoçar. Afinal não é garagem nenhuma. É um
camião enorme que parece um aranhiço, com uma estrutura semicircular em ferro
que serve para compactar o betão que andam a colocar no tecto dos túneis.
Passada
uma hora continuo… Até agora todos os túneis tinham no máximo cento e cinquenta
metros, por isso na entrada de cada um já se vislumbrava a luz de saída. Mas
agora estou a entrar num onde não vejo luz ao fundo. Depois de uns metros a
escuridão toma conta do cenário… “Eh lá, que isto ‘tá escuro aqui! Está mesmo
escuro… já não vejo nada. Ah agora sim, uma luz ao fundo! Chiça!!! É um camião
e eu estou no meio da estrada!” Ele
apita, eu guino para a berma e encosto-me à parede de rocha completamente no
escuro. Que estúpido! Já devia ter tirado o frontal para prevenir uma situação
destas (não estou preocupado com quem me vê, porque tenho reflectores
espalhados pela bicicleta, mas sim em tentar ver a estrada). É o que faço de
seguida e agora sim vislumbro o caminho até à saída. No final do canyon fica um
mosteiro e num mosteiro há sempre uma fonte. Aproveito e paro para abastecer os
bidons com a água fresca. Ao longe vejo pontos minúsculos a subir pelo único
local possível para sair daqui… montanha acima. Carros e camiões escalam a esta
crista rochosa até chegarem ao topo, situado umas centenas de metros mais
acima. É por ali que vou ter de passar! Não sei quanto tempo vou demorar, por
isso faço um segundo almoço. É a segunda grande “escalada” nesta viagem e
nestas situações há uma coisa que a própria subida nos encarrega de nos ensinar
e relembrar a cada metro que passa: a ser humildes. Com as espectativas (é por
isso que as tento manter sempre no nível mais baixo possível) e com a forma
como a encaramos. Com esforço chego ao topo, compro uma garrafa de água e
começo a descida. Do lado esquerdo do rio que vai descendo a montanha entre
floresta cerrada, a estrada, do direito casas aqui e ali. Já falta um par de
horas para o sol se esconder por isso decido tentar encontrar um local onde
passar a noite. Após uma curva em gancho vejo uma ponte de madeira, duas casas
na margem oposta, um local anexo com árvores, um riacho e por fim um homem a
regar as batatas.
Atravesso a ponte e atiro um “Hello!”. De início o senhor, já
de idade fica surpreso por me ver, mas depois, por gestos, pergunto se não há
inconveniente de montar a tenda ali ao lado, debaixo das árvores. O homem não
me liga muito e faz um aceno com a cabeça. Não percebo o que quer dizer e fico
parado. Quando ele repara que eu ainda ali estou faz um sinal com a mão e eu
estico o dedo em sinal de ok! Vou ficar aqui hoje. Quando me preparo para
montar a tenda aparece a mulher do senhor. Simpática! A senhora apresenta-se,
eu também (desfazendo-me em agradecimentos) e pergunta-me se falo francês! “Epah!
Agora é que você me tramou!” – penso eu. Se o meu inglês já não é grande coisa
o francês é uma miséria! Mas pronto, vou tentar ver se sai alguma coisa.
Conversamos um bocado, diz-me que posso utilizar a torneira ao lado de casa
porque a água é boa e de seguida aparece o marido, sorridente a falar pelos
cotovelos… mas em sérvio, a língua oficial do país. Eu sorrio, aceno a cabeça
em sinal afirmativo e fico envergonhado por não perceber nada. Mas ele fica
contente na mesma! Quando já estou sentado a cozinhar o jantar na mesa de
madeira que ali está para os almoços de família, chega a filha do casal. Mas
não chega sozinha. Com ela traz qualquer coisa embrulhada em papel de alumínio.
É um queijo de vaca caseiro, meio folhado (nunca tinha visto nada assim) e é
para mim! Não sei como agradecer. Eu, que vim aqui quase invadir a vida normal
destas pessoas, ainda sou “mimado” com uma coisa destas. Ficamos um bom bocado
à conversa. A senhora vive em Paris, está de férias e diz-me que já esteve por
duas vezes em Portugal. Que na primeira delas era jovem e foi à aventura, só
com o dinheiro no bolso e que logo no Porto conheceu uma família que a convidou
a ir até à sua casa em Braga e que depois a levaram a duas igrejas que ficam lá
no alto. Foi há muitos anos. Diz que ficou impressionada com a hospitalidade
portuguesa por isso voltou, tempos depois. Vejo nos olhos e nas palavras dela
aquele brilhozinho de saudade das coisas que se fazem quando somos jovens e que
deixamos para trás quando somos mais velhos por motivos que às vezes nem
conseguimos explicar. Diz-me também que em Montenegro estou bem, que as pessoas
são tranquilas e que não há aqui a confusão da vizinha Albânia, por exemplo.
Antes de se ir embora ainda me diz que se precisar de algo é só bater à porta,
que estou à vontade! Deito-me a pensar nisto, que só vem dar razão áquilo em
que acredito… o mundo está cheio de gente boa, os noticiários na televisão é
que nos fazem querer convencer do contrário. Quem faz os sítios são as pessoas
e a maior razão que eu tenho para viajar é querer conhece-las.
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