sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Tocar o céu no Bobotov Kuk

Depois de um dia de descanso hoje é o dia que tenho planeado fazer o trekking mais extenso no parque Nacional de Durmitor. Na noite anterior analisei o mapa, as distâncias, os trilhos e decidi que vou tentar ir até ao cume mais alto do parque, Bobotov Kuk, localizado a 2522 metros de altitude. Já sei que serão pelo menos 5 horas até lá e depois cerca de 4 para voltar. Acordo às 7 mas não dormi muito bem, por isso ainda não sei se vou conseguir chegar lá acima. Logo vejo como me vou sentindo… 1 km depois de ter deixado o camping, um carro parado no início do trilho! É um dos guardas do parque que cobra a taxa de turismo para qualquer pessoa que entre dentro do perímetro do parque nacional. Pergunto se o bilhete é válido para os próximos dias: não! Se quiser caminhar todos os dias, todos os dias tenho de pagar a taxa. Cerca de 100 metros à minha frente segue um grupo constituído por 3 rapazes e pela namorada de um deles. Mantenho sempre o contacto visual com eles até que acabamos por seguir mais ou menos juntos a partir da primeira meia hora. O trilho inicia à cota 1500, por isso a primeira hora é uma subida íngreme feita através da densa floresta que ocupa as zonas mais baixas do maciço montanhoso. Está um dia lindo, translúcido e com uma temperatura espectacular. Antes de atingirmos os 1800 metros as árvores desaparecem e dão lugar a pequenos arbustos, a vegetação rasteira e à erva fresca, que desponta agora um pouco por todo o lado. Mas há outro elemento na paisagem do qual é impossível tirar os olhos (pelo menos para mim, habituado à areia da praia e às temperaturas amenas): neve por todo o lado. A partir do ponto onde nos encontramos e até onde o nosso olhar alcança, a neve disputa com o verde da natureza o papel de protagonista. 




Por vezes o trilho fica invisível por debaixo das áreas ainda coberto de branco. Na primeira dessas situações, escavo com os pés umas escadas para conseguir subir para o patamar seguinte.   É nessa altura que me cruzo com um cavalo que abastece provavelmente uma cabana de montanha com o seu dono. Eu sou leve, subo sem muita dificuldade esta zona íngreme com neve e gelo, mas o cavalo, a descer e carregado, faz um género de escorrega até encontrar de novo terra firme. Quando passo a crista rochosa que limita a paisagem, vislumbro um vale enorme, onde pastam dezenas de ovelhas, guardadas pelo pastor que tem uma cabana de madeira com o respectivo redil, mesmo ao lado do trilho. Para fazer mais uns trocos vende também cerveja fresca e refrigerantes (imagino que mantidos nalgum recipiente com gelo retirado das redondezas) aos caminhantes. Paramos e meto conversa com o grupo com o qual vinha fazendo a subida. São estudantes franceses, e estão de visita a Montenegro durante 10 dias. Conheceram-se todos no ano anterior na… China! Cada um deles fazia erasmus na mesma universidade chinesa; a partir daí ficaram amigos e fazem agora as primeiras férias juntos depois dessa aventura asiática. Fico espantado quando reparo que um deles tem calçadas umas sapatilhas de pano (na noite anterior tinha ouvido o dono do camping dizer a outros campistas que para se fazer este percurso convinha ter umas boas botas – eu também não as tenho, só trouxe um par de sapatos de caminhada, perfeitamente normais), mas mais estupefacto fico quando reparo que, de todos, é o que caminha e transpõe os vários obstáculos naturais com maior agilidade. Do local onde nos encontramos não consigo vislumbrar o cume onde vamos tentar chegar – sim, neste ponto do percurso já decidi que vou até lá acima. A perspectiva do parque de campismo era completamente diferente… todos os cumes pareciam mais facilmente acessíveis. Aqui, do ponto onde nos encontramos, a montanha abafa a presença humana e revela-se na sua magnitude através de paredes rochosas imensas, verticais e quase intransponíveis. 




Estou com os sentidos de tal forma embriagados por este “excesso” de natureza que nem sinto os efeitos do esforço. Seguimos… passamos a crista rochosa que se erguia à nossa direita, para voltar a entrar noutro vale, este que conduz a um anfiteatro natural gigante, rodeado por 3 picos rochosos gigantes. O do meio é o Bobotov Kuk e é enorme. Perguntamo-nos como conseguiremos chegar lá acima, visto que da nossa perspectiva, todas as paredes antes do cume são completamente verticais. O trilho aqui desaparece por completo por debaixo da neve que cobre toda a área. Não há um único local onde possamos abastecer os cantis por isso encho os meus com gelo… daí a meia hora, pendurados ao sol, no exterior da minha mochila, estarão perfeitamente bebíveis. A progressão na neve e gelo é tremenda…com muito cuidado e sempre escavando escadas com os pés para não haver nenhum deslize. Quando nos dirigimos para aquele que parece ser o melhor caminho para chegar ao topo, vemos ao longe, numa cota bem superior à nossa, um grupo a esbracejar… Dizem para não subirmos, que do local onde se encontram é impossível aceder ao cume. A única hipótese será “escalar” a vertente de 300 metros, composta por gelo e pedras solta, que se encontra defronte de nós.  Ainda nós estamos a procurar o melhor ritmo e o local onde colocar as mão e os pés quando reparamos que o rapaz das sapatilhas de pano já lá está em cima… nós só chegamos 20 minutos depois. Encontramo-nos agora numa crista de onde se consegue observar a imensidão da paisagem, para leste e para Oeste. Mais caminhantes, alguns vindos do sentido contrário descansam e aproveitam para repor energias deitados na erva fresca, aproveitando um sol maravilhoso. Nós fazemos o mesmo. Ofereço bolachas ao Ami, o rapaz das sapatilhas de pano. Agradece mas não pode comer? “O quê??? Depois deste esforço todo não podes comer?” – penso eu. “Ele é muçulmano e estamos no Ramadão”, diz-me um dos amigos. De sapatilhas de pano, sem comer, e com esta energia toda… Daqui até ao cume faltam cerca de 20 minutos. 




Depois do estômago reconfortado seguimos através da base do pináculo rochoso que constitui o pico. O trilho estreita e chegamos a um ponto em que este fica “pendurado” sobre uma ravina de 700 metros de altura. O Ami atira: “Esta paisagem merece 5 minutos de paragem”. Ficamos ali os 5 em silêncio, sem conseguir dizer nada perante aquele cenário brutal, agressivo, mas completamente deslumbrante. 50 metros mais acima está o acesso final ao cume, que fica 20 ou 30 metros acima desse local. Vamos ter de escalar, está vento e não temos qualquer segurança. Um erro vai atirar-nos para o abismo, 700 metros mais abaixo. Ponderamos… Estamos felizes por termos chegado aqui, por isso não vale a pena arriscar. Sinto pela primeira vez o que é estar no topo de uma montanha pelo meu próprio pé. É outra forma de liberdade que nunca tinha experimentado e fico viciado. Quero fechar os olhos, abrir os braços, inspirar e agradecer estar aqui, vivo e a viver, mas a vista é tão deslumbrante que não consigo! Só consigo sorrir, tal como os meus novos amigos. Agora é a descer e custa muito mais. As pernas já estão massacradas e é mais difícil ultrapassar os locais com neve. Passadas 3 horas chegamos de novo à cabana dos pastores e alguns dos caminhantes aproveitam para descansar e pedir uma cerveja fresca. Daqui até ao camping a caminhada irá ser penosa, já em esforço. Despeço-me dos meus companheiros franceses (o Ami chegou quase uma hora antes de todos nós) e após chegar, aproveito a luz do fim do dia para me esticar na tenda a observar a montanha, cansado mas com um sorriso enorme.



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