Depois
de um dia de descanso hoje é o dia que tenho planeado fazer o trekking mais extenso no parque Nacional de Durmitor. Na noite anterior analisei o mapa, as distâncias, os trilhos e decidi
que vou tentar ir até ao cume mais alto do parque, Bobotov Kuk, localizado a
2522 metros de altitude. Já sei que serão pelo menos 5 horas até lá e depois
cerca de 4 para voltar. Acordo às 7 mas não dormi muito bem, por isso ainda não
sei se vou conseguir chegar lá acima. Logo vejo como me vou sentindo… 1 km
depois de ter deixado o camping, um carro parado no início do trilho! É um dos
guardas do parque que cobra a taxa de turismo para qualquer pessoa que entre
dentro do perímetro do parque nacional. Pergunto se o bilhete é válido para os
próximos dias: não! Se quiser caminhar todos os dias, todos os dias tenho de
pagar a taxa. Cerca de 100 metros à minha frente segue um grupo constituído por
3 rapazes e pela namorada de um deles. Mantenho sempre o contacto visual com
eles até que acabamos por seguir mais ou menos juntos a partir da primeira meia
hora. O trilho inicia à cota 1500, por isso a primeira hora é uma subida
íngreme feita através da densa floresta que ocupa as zonas mais baixas do
maciço montanhoso. Está um dia lindo, translúcido e com uma temperatura
espectacular. Antes de atingirmos os 1800 metros as árvores desaparecem e dão
lugar a pequenos arbustos, a vegetação rasteira e à erva fresca, que desponta
agora um pouco por todo o lado. Mas há outro elemento na paisagem do qual é
impossível tirar os olhos (pelo menos para mim, habituado à areia da praia e às
temperaturas amenas): neve por todo o lado. A partir do ponto onde nos
encontramos e até onde o nosso olhar alcança, a neve disputa com o verde da
natureza o papel de protagonista.
Por vezes o trilho fica invisível por debaixo
das áreas
ainda coberto de branco. Na primeira dessas situações, escavo com os pés umas
escadas para conseguir subir para o patamar seguinte. É nessa altura que me cruzo com um cavalo
que abastece provavelmente uma cabana de montanha com o seu dono. Eu sou leve,
subo sem muita dificuldade esta zona íngreme com neve e gelo, mas o cavalo, a
descer e carregado, faz um género de escorrega até encontrar de novo terra firme.
Quando passo a crista rochosa que limita a paisagem, vislumbro um vale enorme,
onde pastam dezenas de ovelhas, guardadas pelo pastor que tem uma cabana de
madeira com o respectivo redil, mesmo ao lado do trilho. Para fazer mais uns
trocos vende também cerveja fresca e refrigerantes (imagino que mantidos nalgum
recipiente com gelo retirado das redondezas) aos caminhantes. Paramos e meto
conversa com o grupo com o qual vinha fazendo a subida. São estudantes
franceses, e estão de visita a Montenegro durante 10 dias. Conheceram-se todos
no ano anterior na… China! Cada um deles fazia erasmus na mesma universidade
chinesa; a partir daí ficaram amigos e fazem agora as primeiras férias juntos
depois dessa aventura asiática. Fico espantado quando reparo que um deles tem
calçadas umas sapatilhas de pano (na noite anterior tinha ouvido o dono do
camping dizer a outros campistas que para se fazer este percurso convinha ter
umas boas botas – eu também não as tenho, só trouxe um par de sapatos de
caminhada, perfeitamente normais), mas mais estupefacto fico quando reparo que,
de todos, é o que caminha e transpõe os vários obstáculos naturais com maior
agilidade. Do local onde nos encontramos não consigo vislumbrar o cume onde
vamos tentar chegar – sim, neste ponto do percurso já decidi que vou até lá
acima. A perspectiva do parque de campismo era completamente diferente… todos
os cumes pareciam mais facilmente acessíveis. Aqui, do ponto onde nos
encontramos, a montanha abafa a presença humana e revela-se na sua magnitude através
de paredes rochosas imensas, verticais e quase intransponíveis.
Estou com os
sentidos de tal forma embriagados por este “excesso” de natureza que nem sinto
os efeitos do esforço. Seguimos… passamos a crista rochosa que se erguia à
nossa direita, para voltar a entrar noutro vale, este que conduz a um
anfiteatro natural gigante, rodeado por 3 picos rochosos gigantes. O do meio é
o Bobotov Kuk e é enorme. Perguntamo-nos como conseguiremos chegar lá acima,
visto que da nossa perspectiva, todas as paredes antes do cume são
completamente verticais. O trilho aqui desaparece por completo por debaixo da
neve que cobre toda a área. Não há um único local onde possamos abastecer os
cantis por isso encho os meus com gelo… daí a meia hora, pendurados ao sol, no
exterior da minha mochila, estarão perfeitamente bebíveis. A progressão na neve
e gelo é tremenda…com muito cuidado e sempre escavando escadas com os pés para
não haver nenhum deslize. Quando nos dirigimos para aquele que parece ser o
melhor caminho para chegar ao topo, vemos ao longe, numa cota bem superior à
nossa, um grupo a esbracejar… Dizem para não subirmos, que do local onde se
encontram é impossível aceder ao cume. A única hipótese será “escalar” a
vertente de 300 metros, composta por gelo e pedras solta, que se encontra
defronte de nós. Ainda nós estamos a
procurar o melhor ritmo e o local onde colocar as mão e os pés quando reparamos
que o rapaz das sapatilhas de pano já lá está em cima… nós só chegamos 20 minutos
depois. Encontramo-nos agora numa crista de onde se consegue observar a
imensidão da paisagem, para leste e para Oeste. Mais caminhantes, alguns vindos
do sentido contrário descansam e aproveitam para repor energias deitados na
erva fresca, aproveitando um sol maravilhoso. Nós fazemos o mesmo. Ofereço
bolachas ao Ami, o rapaz das sapatilhas de pano. Agradece mas não pode comer?
“O quê??? Depois deste esforço todo não podes comer?” – penso eu. “Ele é
muçulmano e estamos no Ramadão”, diz-me um dos amigos. De sapatilhas de pano,
sem comer, e com esta energia toda… Daqui até ao cume faltam cerca de 20
minutos.
Depois do estômago reconfortado seguimos através da base do pináculo
rochoso que constitui o pico. O trilho estreita e chegamos a um ponto em que
este fica “pendurado” sobre uma ravina de 700 metros de altura. O Ami atira:
“Esta paisagem merece 5 minutos de paragem”. Ficamos ali os 5 em silêncio, sem
conseguir dizer nada perante aquele cenário brutal, agressivo, mas
completamente deslumbrante. 50 metros mais acima está o acesso final ao cume,
que fica 20 ou 30 metros acima desse local. Vamos ter de escalar, está vento e
não temos qualquer segurança. Um erro vai atirar-nos para o abismo, 700 metros
mais abaixo. Ponderamos… Estamos felizes por termos chegado aqui, por isso não
vale a pena arriscar. Sinto pela primeira vez o que é estar no topo de uma
montanha pelo meu próprio pé. É outra forma de liberdade que nunca tinha
experimentado e fico viciado. Quero fechar os olhos, abrir os braços, inspirar
e agradecer estar aqui, vivo e a viver, mas a vista é tão deslumbrante que não
consigo! Só consigo sorrir, tal como os meus novos amigos. Agora é a descer e
custa muito mais. As pernas já estão massacradas e é mais difícil ultrapassar
os locais com neve. Passadas 3 horas chegamos de novo à cabana dos pastores e
alguns dos caminhantes aproveitam para descansar e pedir uma cerveja fresca. Daqui até ao camping a caminhada irá ser penosa, já em
esforço. Despeço-me dos meus companheiros franceses (o Ami chegou quase uma hora
antes de todos nós) e após chegar, aproveito a luz do fim do dia para me esticar na tenda a
observar a montanha, cansado mas com um sorriso enorme.
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