quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Reencontro com o mar

Viagem e aprendizagem são sinónimas, andam sempre de mãos dadas. A primeira coisa que me vem à cabeça assim que acordo é que para a próxima viagem que fizer há duas coisas que não vão faltar na mochila: uns tampões para os ouvidos e uma máscara para dormir. Nesta noite que passou tinham dado um jeitão! Os primeiros para abafarem o ruído dos carros e camiões que passavam na estrada que fica a poucos metros do local onde tinha a tenda, a segunda para não acordar às 4 e pouco da manhã todos os dias, hora em que começa a amanhecer por estes lados. Na falta do tapa-olhos tenho dormido com o meu gorro polar enfiado até ao nariz… também serve. A decisão que tinha deixado para hoje, sobre qual a estrada a seguir, estava inconscientemente tomada desde há muito… era só uma questão do meu corpo ceder ao meu sonho: o de chegar às montanhas que abraçam a baía de Kotor ao pôr-do-sol. Não faço ideia se a vista de lá é boa e se é o melhor ângulo para fotografar a costa do adriático, por um motivo muito simples: nunca lá estive. Mas esse é o meu objectivo, por isso vou-me preparando mentalmente para que hoje seja o dia mais duro de toda a viagem, até agora. O terreno é um sobe e desce constante, são 100km até ao destino e às 8 da manhã já estão 30 e poucos graus. Não faço a mínima ideia se conseguirei chegar a Kotor hoje, mas também não estou preocupado… só tenho de estar em Veneza daqui a duas semanas para apanhar o voo de volta a casa. Os meus anfitriões não me deixam ir embora sem antes tomar o pequeno-almoço que me prepararam. Apesar de ser Domingo, o trabalho não pára e peço a um cliente da oficina que me tire uma foto com o dono. Para a posteridade fica a minha cara com o aspecto de ter sido atacada por um enxame de abelhas, mas não… foi só uma noite mal dormida. Despedidas feitas, morada anotada no meu caderno e sigo viagem.




A estrada percorre inicialmente as margens do lago onde tinha planeado ter ficado na noite anterior. O cenário que se vislumbra a partir daqui é diferente do que encontrei até agora: aldeias de pedra parecem nascer naturalmente na paisagem e as montanhas enrugam-se ainda mais. Já aqui tinha estado sem nunca cá ter posto os pés. Foi no Gerês, há alguns anos. Aqui tudo me lembra essa realidade em que a montanha cria as lendas, isola as aldeias e molda os homens, apenas com uma diferença: lá o granito, aqui o calcário. Aquilo que vinha sendo um passeio à beira do lago depressa se transforma numa subida sem fim. A vegetação, na sua maioria composta por mato e árvores, ajuda a quebrar o calor, pois em alguns locais as árvores fazem sombra a toda a largura da faixa de alcatrão. É o dia mais quente até agora, mas sinto-me bem. Às vezes, não sei vinda de onde, sou assaltado por uma energia súbita, que parecia estar guardada para estas alturas de maior esforço. O terreno é tão irregular e o mato tão cerrado que não consigo adivinhar qual o percurso que a estrada tomar na paisagem. Durante quilómetros a fio não encontro nenhuma recta com uma extensão superior a 100 metros. Sinto-me num carrossel: altos e baixos, esquerda, direita, os sentidos embriagados e um sorriso infantil no rosto. Passam cerca de 4 horas e até agora cruzei-me com 3 carros, 2 motas e algumas pessoas a pé, no meio do nada. De repente lembro-me das palavras do Seweryn, o polaco também a viajar de bike, que conheci uma semana antes, quando lhe perguntei acerca desta estrada - “Man that’s a crazyyyy road”. Não sabia se ele tinha dito isso por causa da beleza ou da dificuldade, mas agora já descobri: é por causa das duas. Na aldeia que fica sensivelmente a meio do trajecto que pretendo percorrer hoje, paro para almoçar. No único café da aldeia, saído de um filme dos anos 70, cobram-me 2 euros por uma coca-cola e por me encherem os bidões com água da torneira. Ao longe começo a reparar numa espécie de cortina montanhosa, limitada por um pico de onde sobressaem várias antenas retransmissoras. Imagino que seja na zona a oeste dessas elevações que fique situada a baía de Kotor. Entretanto as aldeias vão-se sucedendo. Passo por uma, longe de tudo, onde está um homem bêbado, debruçado em cima da mesa do único café. Do lado oposto da estrada vários homens cantam, bebem e acenam à minha passagem. A estrada começa finalmente a subir e vislumbro pela primeira vez o local onde deve ficar situado o passo de montanha que tenho de atravessar para chegar à baía de Kotor. Preciso de água e num edifício que serve de escola e junta de freguesia, no meio de nenhures, fica também um café. O dono, a única pessoa que resiste àquela desolação, permanece solitário a ver um filme que passa na TV. Enche-me os bidões e deseja-me boa viagem. Uns quilómetros mais à frente estaciono à sombra de uma casa abandonada para comer algo. Passados 5 minutos vejo aproximarem-se ao longe dois ciclistas com alforges. Param quando me vêm. São duas belgas que vão até à Grécia. Trocamos itinerários, dicas e quando lhes vou para dizer que está um calor de morrer, elas adiantam-se e dizem que a temperatura aqui é fresca, porque em kotor, de onde saíram hoje de manhã e para onde me dirijo, estão mais 10 graus. Engulo em seco! Elas já fizeram hoje mais de 1000 metros sempre a subir com este calor… sinto-me um menino ao pé destas duas viajantes que não parecem acusar muito cansaço. Já sei que faltam só 4 km para atingir o passo de montanha e depois deverei ver então o mar Adriático e a baía. Quase uma hora depois e estou praticamente no topo. Vou imaginando qual será o cenário que me espera lá em cima, agora que o sol começa a espalhar um tom laranja intenso por todo o lado, típico dos finais de tarde memoráveis. A estrada inclina-se mais um pouco, eu começo a ficar com um friozinho na barriga... o mar está do outro lado! Mais uma curva e, no meio da vegetação cerrada vejo o topo. É ali, consegui cá chegar! Estou radiante, ansioso e quando finalmente termino a subida…





Nada de água salgada! Vejo à minha frente o que se assemelha a uma enorme cratera, com cerca de 2 km de diâmetro, rodeada por escarpas de calcário enormes. Na sua base estão 3 aldeias e campos de cultivo que, qual paleta de cores, dão local um tom ainda mais mágico ao cenário. Ao fundo, no horizonte, consigo distinguir uma linha muito ténue. Imagino que seja o mar. A estrada desce até à base da cratera, para voltar a subir novamente no limite oeste desta. Estou inquieto e as minhas pernas imitam o coração: aceleram; e a vontade de ver para além daquele monte de calcário que está mesmo à minha frente é superior a todo o cansaço que possa ter. Passo por motociclistas que trazem um sorriso no rosto, imagino que da vista que acabaram de presenciar. Chego a um ponto em que vislumbro dois pináculos de rocha, rasgados pela estrada. Quando lá chego a montanha abre-se e dá lugar a uma vista impressionante sobre a baía de Kotor, o recorte das elevações mais próximas e o Mar Adriático. Paro a bicicleta, os meus olhos inundam-se e as lágrimas caem-me pelo rosto. Chorar de tanta felicidade é algo que não consegue ser avaliado por nenhum dos sistemas de medida inventados pelo ser humano. Sinto-me leve, nas nuvens, capaz de abraçar toda esta natureza que me envolve. Daqui até lá abaixo, à baía, são 22 km, através de 25 curvas em serpente, todas elas numeradas. Tiro as últimas fotos e deixo a máquina de lado. Eu e a bicicleta somos, agora mais que nunca, um só! Descida abaixo, o único movimento que o corpo executa é o de deitar-me para a esquerda ou para a direita, conforme a inclinação de cada curva. Quando chego finalmente à baía está um calor sufocante e já passa das 7 da tarde. Apanho um choque com a quantidade de gente que vejo por todo o lado, com a música alta que sai de um dos bares da marginal e com a confusão de carros desportivos, barcos e afins. Depois apercebo-me que hoje é Domingo... O Tomek, um polaco que conheci o ano passado na Roménia e do qual fiquei amigo, esteve há duas semanas aqui em kotor. Falámos pela net e ele deu-me umas indicações preciosas: qual o local onde fica um parque de campismo barato, quanto quilómetros são de lá até à antiga cidade de Kotor, etc… Faço como ele fez e dirijo-me a um camping, localizado já quase no centro da baía. Entretanto ainda me cruzo com um casal de ciclistas canadianos, que viajam entre Split e Istambul. chego ao parque, atulhado de gente, mas lá acabo por conseguir descobrir um recanto mais tranquilo. No entanto há uma coisa que me deixa feliz: do outro lado da estrada fica a água morna da baía e digo morna porque observo dezenas de pessoas que ainda tomam banho quando já são 11 da noite.






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