Às 7h30 estou de pé para ir às
compras antes de apanhar o autocarro para o mosteiro de Rila, às 10:20. Como a
estação de onde este parte fica numa das saídas da cidade, ainda tenho que
apanhar o eléctrico até lá. Durante a viagem, que dura cerca de 20 minutos,
vejo edifícios em ruinas, prédios que não consigo vislumbrar se estão ou não
habitados, cavalos e carroças que fluem no meio do trânsito. A estação é um
pequeno terreiro esburacado, onde algumas pessoas esperam os miniautocarros
(com capacidade para 20 passageiros) que fazem a maioria das ligações
rodoviárias na Bulgária. O meu plano para os próximos 3 dias é o seguinte:
visitar o mosteiro e a seguir entrar nos trilhos que compõem o parque natural
do mosteiro de Rila, caminhando até à Ribni Ezera, o chalet de montanha mais
próximo, onde vou passar a noite. No dia seguinte caminhar até à Makedonia
Ezera, através de uma crista de montanha que, pelo que sei, oferece vistas de
cortar a respiração. No 3º dia, voltar ao mosteiro de Rila pela vertente Sul da
montanha e, finalmente, apanhar o autocarro de volta a Sofia. Quando já estou dentro do autocarro vejo um
jovem asiático a correr de um lado para o outro. Percebo que procura este
autocarro. Depois de entrar, meio esbaforido, senta-se ao meu lado.
Apresentamo-nos. Chama-se Jae, é Sul-coreano e está a dar uma volta ao mundo
durante 9 meses. Já passou pela Tailândia, Índia, Turquia e Grécia. Durante a
viagem vamos trocando impressões. Diz-me que toda a gente lhe fala muito bem de
Portugal e que gostava de lá ir depois de voltar de África, o continente que
vai visitar a seguir. O tempo está cinzento e de quando em vez, vemos na beira
da estrada bancas com vendas ambulantes de artigos militares e fatos de pilotos
de automóvel! As pessoas trabalham nos campos recorrendo a carroças de 4 rodas
de madeira, arados puxados por cavalos e foices que fazem as vezes das máquinas
de ceifar. Na Vila de Rila, a 20 Km do mosteiro, paramos 20 minutos… “Então
agora que já só faltam 20 km é que paramos 20 minutos???”
Continuamos… a estrada
vai subindo pelo fundo de um vale encaixado coberto de árvores que apresentam
vários tons de verde e quase não deixam passar a luz. Ao chegarmos, uma das
pessoas que vinha autocarro pede se lhe posso tirar uma foto à entrada do
mosteiro. “Claro que sim!” Chama-se Julia e é Ucraniana, de Odessa e está a
viajar pela Bulgária. O Jae aproveita e pede à Julia que também lhe tire uma
foto. Qual não é o meu espanto, quando o vejo a fazer poses de “dragonball”,
com os braços esticados num sentido, depois com as mãos juntas como se
estivesse a mandar bolas de fogo! Espectáculo!!! Damos uma volta pelo mosteiro
ortodoxo, hoje conhecido como a Jerusalém búlgara. É o local mais visitado do
país, mas mesmo assim, não andam muitos turistas por aqui.
Temos fome, por isso
procuramos um restaurante nas imediações. A Julia queixa-se da dificuldade de
obter um visto para visitar um qualquer país da Europa e queixa-se também da
inércia dos jovens na Ucrânia, mesmo os que têm possibilidade, não viajam
muito, preferem passar o tempo no sofá a fazer coisas mais “interessantes,” como
ver televisão! Digo-lhe que no meu país é mais ou menos parecido. Fica
espantada! “Então não são vocês que são conhecidos por serem aventureiros por
causa da época dos descobrimentos?” Respondo-lhe que não, que isso é um mito! O
Jae diz que no país dele um cidadão normal só tem direito a 2 semanas de férias
por ano, no máximo 3 - “To much work, the people get crazy”, finaliza.
São
14h30, eu estou a adorar a companhia, mas tenho de me despedir. O chalé de
montanha fica a cerca de 5 horas de caminho e, apesar de só anoitecer às 22h eu
não quero correr riscos porque sempre são 1200 metros de desnível. O trilho que
inicia mesmo nas traseiras do mosteiro, segue pela estrada que acompanha o
fundo do vale. As primeiras 2 horas de caminhada são monótonas, não se vê
ninguém e andar pelo alcatrão é aborrecido. Só quando este acaba e se transforma
num estradão de montanha é que a paisagem se deixa finalmente mostrar. Afinal
continuo no mesmo vale, mas agora numa cota muito superior. Vertentes de rocha
abruptas precipitam-se 400 metros desde o topo da montanha até ao local onde me
encontro. Começa a chover… pelas minhas contas ainda faltam cerca de 2 horas de
caminhada, por isso apresso o passo, até que chego ao final do estradão. A
partir daqui, de onde já se vislumbra neve nos picos mais altos, o caminho até
ao chalet só se faz por um trilho.
Cinco minutos depois vejo o que me parecem
ser 2 pessoas, mais à frente no trilho. Afinal são 4, 3 homens e uma mulher. Um
deles leva a mulher por uma mão e no braço oposto, uma carabina. Os outros 2
levam uma égua cada, sendo que uma delas vai carregada com os mantimentos que
abastecem o chalet. Sigo atrás do grupo em silêncio, até que o casal fica para
trás. Até chegar ao destino, o vale por onde caminhamos inflecte para a direita
e deixa antever ao longe, a casa, que fica entre dois lagos, numa espécie de
anfiteatro.
Quando chegamos a dona, uma velhota simpática, diz para me dirigir
à sala que fica á direita da entrada. Fala comigo em búlgaro e ri-se, como se
eu percebesse tudo perfeitamente! Eu também me rio com a situação. O casal que
se encontra a comer repara no meu embaraço e faz a ponte na comunicação. Peço
uma sopa e dois pedaços de carne, acompanhados por um chá. A seguir a mesma
velhota traz-me os lençóis e leva-me ao primeiro andar, a uma camarata com 5
beliches, dois deles já ocupados pelo casal que se encontra lá em baixo.
Saio e
vou até ao lago mais distante da cabana. As nuvens começam a desaparecer e o
sol ilumina pela última vez a colina, antes de se esconder. Só se houve o som
da água, que escorre de todos os lados. Um denso tapete de erva circunda o
lago. Deito-me, abro os braços, fecho olhos, respiro fundo e sorrio. Estou
feliz! Penso na sorte que tenho, por poder estar aqui. Penso também naqueles
que queriam ter só algo de tão básico como uma refeição para comer e não podem.
É um pensamento estúpido, eu sei! Não posso viver a desgraça dos outros para os
aliviar. Antes de me deitar no beliche que se afunda como se de uma cama de rede se tratasse ainda espreito pela janela que mostra a montanha recortada por um céu estrelado.
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